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terça-feira, 14 de maio de 2024

Artigo- A Cumulação e a Conversão de Técnicas Executivas na Execução do Crédito Alimentar

 

Artigo da associada do IARGS, Camila Victorazzi Martta, advogada, Doutoranda e Mestre em Direito pela PUC/RS
Tema: A Cumulação e a Conversão de Técnicas Executivas na Execução do Crédito Alimentar




Introdução

Vivemos na sociedade da pressa. Dessa premissa, o processo judicial já sai perdendo, pois mesmo com toda a automação do Poder Judiciário a prestação jurisdicional ainda é lenta. Obviamente, que são diversos os fatores que incrementam esse problema. O volume de processos é um dos itens mais preocupantes.

Nesse sentido, a exigência de dois procedimentos executivos para a cobrança de uma mesma dívida acaba indo de encontro com a eficiência da prestação jurisdicional que tanto se debate na doutrina e na jurisprudência.

Além disso, o credor de alimentos ainda padece para obter aquilo que sequer deveria existir como objeto de processo. O processo de execução de alimentos, via de regra, direcionado à medida coercitiva (prisão) tende a ser mais eficiente se comparado ao procedimento executivo distribuído pelo rito da constrição (penhora), que acaba sendo um grande e tormentoso caminho indigno para o próprio credor.

O artigo pretende demonstrar, por meio do método de revisão bibliográfica e análise jurisprudencial, especialmente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a necessária adequação da cumulação ou da conversão dos meios executórios num único procedimento, como medida de concretização da prestação jurisdicional mais eficiente.

Não se defende a ideia de extirpar do Código de Processo Civil os dois procedimentos. Mas sim, a viabilidade de utilização de apenas um deles com a cumulação ou a conversão das técnicas executivas.

Para tanto, o estudo que ora se apresenta foi dividido em três partes, sendo a primeira um breve panorama do processo executivo de alimentos no Código de Processo Civil vigente. A segunda parte é desenvolvida a partir de uma crítica ao apego injustificável aos dois ritos executivos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a partir da análise de sua jurisprudência. Interessante, que o próprio tribunal reconhece o abrandamento pelo Superior Tribunal de Justiça, mas ainda assim se mantem inflexível com a regra de ritos para a cobrança executiva da dívida alimentar.

Ressalta-se, que a obrigação alimentar é única, embora de trato sucessivo, ou seja, deve ser quitada mensalmente também em razão da sua finalidade: subsistência. O tema voltou ao debate porque durante a pandemia da Covid-19, devido a impossibilidade de recolher os inadimplentes à prisão, foi muito comum a conversão da medida coercitiva em prisão domiciliar, ou em medida constritiva no mesmo procedimento. Daí a questão de simplificar o que não precisa ser complicado.

Esse tema também já foi objeto de incidente de resolução de demandas repetitivas pelo Tribunal Pleno do Estado do Amazonas. Embora com algumas críticas aos fundamentos da decisão, o tribunal amazonense também entendeu que é viável a cumulação das técnicas executivas num mesmo procedimento.

Os argumentos para afastar a viabilidade de cumulação das técnicas executivas restringem-se em afirmar que a junção causaria tumulto processual, trabalho contraproducente, prejuízo ao devedor e por fim violação ao artigo 780 do CPC vigente.

Por fim, defende-se a total viabilidade de cumulação das medidas executivas num único procedimento, numa espécie de flexibilização do rito processual da execução por quantia certa, rebatendo-se todos os argumentos supra expostos, com fundamentos no próprio sistema processual. Além disso, se é possível cumular medidas típicas e atípicas, ainda que de forma subsidiária, não há qualquer justificativa plausível que impeça a cumulação de duas medidas executivas típicas, sendo que a medida coercitiva, quando ineficaz, a própria lei já autoriza sua conversão.

1. Breve panorama do processo de execução de alimentos no

Código de Processo Civil de 2015

O processo de execução da pensão alimentícia é um tema de grande repercussão e debates, seja porque o seu objeto envolve a perda momentânea da liberdade do executado, pois é uma das raras hipóteses que a Constituição Federal admite prisão por dívida (5º, LXVII)[1], seja porque o exequente precisou se utilizar do respectivo procedimento para sobreviver. Há, certamente, dois pesos de grande valia em cada lado da balança e, portanto, é um assunto que não esgota a pauta, sempre surgem novos desafios.

Outra questão interessante do processo executivo da pensão alimentícia está relacionada com o tempo do processo. Justamente, por ser uma medida extrema utilizada para recompor uma necessidade de sobrevivência, a burocracia procedimental muitas vezes se torna inimiga do próprio exequente, que na maioria das vezes pena para obter êxito na tutela jurisdicional desse direito.

Nada obstante às intempéries do sistema, a execução de alimentos está prevista no Código de Processo Civil, que oferece um menu de meios executórios ao exequente a depender de peculiaridades do caso concreto. Na maioria das vezes, é preciso utilizar dois procedimentos, pois via de regra o devedor de alimentos não está inadimplente com um ou dois meses da pensão alimentícia. O que normalmente acontece é que a inadimplência do devedor alcança mais de três parcelas mensais da referida pensão. E isso faz com que o credor dessa pensão alimentícia tenha de utilizar dois procedimentos com medidas executórias diversas para a composição da mesma dívida.

É inteiramente livre a opção do exequente por um dos caminhos traçados em lei[2]. Ante o caráter de subsistência dos alimentos, o credor poderá optar pelo rito da prisão, conforme descrito nos artigos 528 ou 911, parágrafo único, do Código de Processo Civil somente se o seu crédito corresponder às três últimas pensões vencidas e inadimplidas antes do ajuizamento da execução, bem como àquelas que se vencerem durante o processo. Havendo outras parcelas em atraso, mais antigas, o exequente poderá utilizar o rito expropriatório (penhora de bens) nos termos dos artigos 523 ou 911 do mesmo diploma legal, pois já se estará à frente de uma dívida de valor, ou seja, desprovida da qualidade da necessidade à sobrevivência.

Importante observar, ainda, o tipo do título executivo que assegura tal processo: se uma sentença ou uma decisão interlocutória, deverá o credor optar pelo cumprimento de sentença[3]. Se o título executivo for extrajudicial, como, por exemplo, uma escritura pública, o credor deverá eleger o rito tradicional do processo executivo para cobrança de quantia certa.

A escolha do rito executivo ou do cumprimento de sentença não apresenta maiores problemas ao credor de alimentos, pois há uma relativa homogeneidade[4]. O que muda efetivamente, é o meio executório[5].

Entretanto, o que tem se mostrado inadequado ao presente momento é a eventual necessidade de dividir essa dívida, em razão do tempo de inadimplemento do devedor, para executa-la por meio de dois procedimentos, que a doutrina mesmo já observou que não guardam diferenças[6], senão pelo meio executório utilizado. Ou seja, novamente, por culpa única e exclusiva do devedor de alimentos, o credor terá de ingressar com dois procedimentos diferentes, por mera disposição legal, para a cobrança de dívida única.

Pontua-se ainda, por oportuno, que o credor poderá optar por apenas um procedimento. Todavia, ao eleger o rito expropriatório, ele perde a possibilidade do pedido de prisão e, ao contrário, ao escolher o rito da prisão, seu pedido ficará adstrito às três parcelas anteriores ao ajuizamento, além daquelas que se vencerem no curso da ação. O que significa, em outras palavras, numa espécie de renúncia de direito de ação/execução. Entretanto, o que deve ser sopesado nesses casos também é a figura do devedor. Se ele tem ou não patrimônio, a sua reputação, o impacto do processo executivo na sua vida. Dependendo do caso concreto, a prática demonstra que a medida coercitiva prisional é extremamente eficaz, embora restrita, no máximo, a três parcelas, o dinheiro aparece de forma muito rápida.

Nos casos em que o valor inadimplido é alto e o devedor tem patrimônio, a penhora e a restrição de crédito são medidas executivas eficazes, embora mais demoradas, já que demandam outras etapas do processo como leilão, eventual adjudicação, conforme for o caso. Evidentemente, que o peculiaridade do caso concreto vai nortear a escolha do credor, mas a possibilidade de simplificar sempre traz esperança de uma prestação jurisdicional mais eficiente.

2. Dois procedimentos para uma mesma dívida: problemas dessa sistemática

A necessidade de distribuição de dois processos executivos para tutelar a mesma dívida é, na verdade, uma legalidade burocrática desarrazoada na atualidade. Vai de encontro com a simplificação e a adaptabilidade que se têm buscado para baixar o acervo interminável de processos, diminuir a litigância exacerbada e, principalmente, para melhorar a prestação jurisdicional. O jurisdicionado sempre questiona o motivo de ingressar com “dois processos” se a dívida é única, embora de trato sucessivo. De fato, o que parece, num primeiro momento, que é o advogado que quer se locupletar da fome alheia, quando na realidade se está cumprindo a norma processual.

Esse é o problema que se apresenta. Aos olhos do credor a dívida é uma só e a duplicidade de processo sempre deve ser explicada.

O Brasil adotou o sistema rígido das formas dos atos processuais. O Código de Processo Civil de 1973 não admitia qualquer forma de flexibilização nessa matéria. O atual Código de Processo Civil tem uma predileção pela rigidez processual, porque as normas de processo são regras de ordem pública, imperativas, que independem da vontade das partes e que devem ser cumpridas a fim de atender, principalmente, a segurança e previsibilidade do próprio sistema processual. Entretanto, não rejeitou de maneira absoluta, a possibilidade de mudanças procedimentais, ofertando, assim, lastro legal para a flexibilização processual. Citam-se os artigos 139, IV, VI; 190 e 191 do Código de Processo Civil como exemplos.

Na realidade o caso em questão nem se trata de uma flexibilização processual. A versatilidade que se pretende defender é de aglutinação de técnicas executivas num único procedimento. E, ainda, sem modifica-lo, obviamente. O paralelo que se faz com a flexibilização procedimental é para demonstrar que se pode o mais, por que não o menos?

Para tanto, é preciso compreender que o processo e procedimento são conceitos que não se confundem. Pode-se afirmar que o processo é um meio de composição da lide, segundo a ordem jurídica, restabelecendo a ordem inicial[7]. Segundo Fernando Gajardoni, processo

é entidade complexa composta pelo conjunto de todos os atos necessários para a obtenção de uma providência jurisdicional num determinado caso concreto, podendo ele conter um ou mais procedimentos (procedimento recursal), ou, inclusive, apenas um procedimento incompleto (indeferimento da petição inicial). O processo é o veículo pelo qual o Estado-Juiz, ou quem lhe faça às vezes, exerce a jurisdição (dever-poder de dizer o direito de forma definitiva), o autor o direito de ação e o réu o direito de defesa (contraditório)[8].

O procedimento, por sua vez, nada mais é do que o caminho percorrido. A forma de como o processo, a prestação jurisdicional, vai acontecer. Fernando Gajardoni explica que o procedimento é

a faceta dinâmica do processo, é o modo pelo qual os diversos atos processuais se relacionam na série constitutiva do processo, representando o modo do processo atuar em juízo (seu movimento), pouco importando a marcha que tome para atingir seu objetivo final (...).[9]

Na visão de Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos, o conceito de processo ainda não encontra uma formulação definitiva na doutrina[10], mas certo é que está entrelaçado com o de procedimento. E todo procedimento, segundo os autores, para ser legítimo e para legitimar o poder estatal, deve incluir a participação de todos os sujeitos processuais[11].

Notadamente, o que se tem por trás de determinadas medidas flexibilizantes é a possibilidade de se concretizar uma tutela jurisdicional mais ágil, completa, com julgamento de mérito, quando for o caso, e consequentemente com a entrega do bem da vida de forma mais eficiente e adequada ao caso concreto. Quanto mais técnicas executivas legítimas disponibilizadas as partes terão mais chances de obter um resultado positivo do processo.

Diante desse cenário, não parece mais viável a manutenção da necessidade de dois procedimentos para se buscar a mesma tutela executiva alimentícia. Vale aqui a lembrança que o rito coercitivo da liberdade do devedor não elide a obrigação do pagamento dos alimentos. Não raras as vezes em que mesmo preso o devedor se mantem inadimplente, descaracterizando a natureza de dívida de subsistência, dando a ela uma roupagem de dívida de valor, cujo decreto prisional não poderá ser renovado. Ou seja, mesmo no caso de medida executiva prisional extrema, a dívida ainda pode persistir, tornando esse procedimento sem qualquer efeito prático[12]-[13].

Nota-se que o procedimento executivo pelo rito da coerção pessoal tem vida curta. Se o devedor cumpre a obrigação, o processo será extinto. Caso contrário, o devedor sai da prisão e a dívida passa a ser cobrada pelo rito da execução por quantia certa. Ou seja, mais uma razão para defender a desnecessidade de dois processos. É preciso simplificar.

Observa-se o apego injustificado ao rito procedimental do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul[14], por exemplo, com diversos julgados no sentido de que cabe ao credor a escolha do rito, não sendo possível a cumulação. Aplaude-se, por oportuno, o entendimento exposto pelo Desembargador Rui Portanova, da Oitava Câmara Cível do Tribunal Gaúcho, no sentido de acolher a conversão de ritos, quando um deles se mostra ineficaz[15].

As justificativas maciças para o atendimento ao comando legal caminham no sentido de que a legislação vigente assim determina e, ainda, porque a cumulação poderia causar tumulto processual e prejuízo ao réu.

Notadamente, a previsão legislativa pode ser um empecilho, mas é preciso observar que atualmente se tem um diploma processual que incentiva a promoção da celeridade e a efetividade do processo atrelados a menor onerosidade não apenas às partes, mas também ao Poder Judiciário. O processo é (deveria ser) mais dialogado, mais maleável com vista a sua finalidade de solução dos conflitos, mesmo que para isso seja necessário mudar determinado procedimento, sem desatender, obviamente, aos princípios constitucionais processuais, especialmente o contraditório amplo e todos os demais que compõem o seu arcabouço basilar, como à celeridade e à eficiência, que valorizam a flexibilidade de procedimentos, justamente a fim de entregar a tutela adequada e eficiente ao jurisdicionado.

O Código de Processo Civil de 1973 já autorizava a cumulação de ritos, desde que se elegesse o procedimento ordinário como norteador. Tal prática foi referendada pelo atual Código de Processo, que apenas renomeou o procedimento de ordinário para comum. Se é possível cumular ritos, que é o mais, também é possível cumular o menos que são as técnicas procedimentais com base na norma aberta existente no artigo 139, VI, do Código vigente.

O processo de execução também admite a cumulação. O artigo 780 do Código vigente autoriza que o exequente cumule várias execuções, mesmo que fundadas em títulos diferentes, desde que o executado seja o mesmo e, ainda, que para todas elas seja competente o mesmo juízo e idêntico o procedimento. Impossível, por exemplo, cumular execução de título extrajudicial com cumprimento de sentença, que essa última é uma fase procedimental[16].

Independentemente disso, a cumulação de técnicas executivas voltou ao centro do debate doutrinário e jurisprudencial a partir da pandemia da Covid-19. A crise do Coronavírus em 2020[17] autorizou que devedores de alimentos cumprissem a prisão domiciliar ao invés de serem recolhidos à prisão, como medida substitutiva. Com efeito, em razão da impossibilidade de recolhimento dos inadimplentes ao sistema prisional, abriu-se a oportunidade de, no mesmo rito, cumular-se ou converter-se o pedido de decreto prisional em prisão domiciliar e, em outras situações, em pedido de penhora. A jurisprudência gaúcha[18] aderiu ao posicionamento nacional exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, durante a excepcionalidade da pandemia da Covid-19 e pode-se afirmar que a totalidade dos pedidos de prisão eram convertidos em prisão domiciliar ou atrelados eventualmente à medida expropriatória. Entretanto, a mesma Corte não admite a possibilidade de cumulação sucessiva das técnicas executivas[19].

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por meio do Centro de Estudos emitiu o enunciado número 22 com a seguinte redação e justificativa:

22ª – Não deve ser admitida, em um mesmo processo, de forma simultânea ou sucessiva, a execução de alimentos pela via expropriatória e coercitiva. (Unanimidade). Justificativa: Prática muito disseminada tem sido a de cumular, de forma simultânea ou sucessiva, em uma mesma execução de alimentos, as modalidades expropriatória e coercitiva. Tal praxe tem se mostrado contraproducente, por gerar, de regra, acérrimos tumultos processuais, que somente protelam a entrega da prestação jurisdicional. Cumpre, pois, evitá-la, com a determinação de que , em havendo débito alimentar composto por mais de três parcelas, sejam propostas, simultaneamente, execuções separadas, com seus ritos próprios (arts. 732 e 733, CPC) e tramitação independente, o que certamente representará economia processual. PRECEDENTES: AI 598527901 (7ª C. Cível); AI 599177565 (8ª C. Cível); AI 599177037 (8ª C. Cível); AI 599247897 (7ª C. Cível); AI 598056125 (7ª C. Cível); AI 596149641 (7ª C. Cível).

De fato, um retrocesso da Corte gaúcha, que sempre foi reconhecida nacionalmente como vanguardista. A justificativa apresentada é vaga e sem grandes fundamentações.

Apesar desse debate ter tomado maiores proporções em razão da pandemia passada, o Tribunal de Justiça do Amazonas julgou em 2019 um incidente de resolução de demandas repetitivas[20] acerca dessa matéria, relatado pelo Desembargador Aristóteles Lima Thury, em que o Tribunal Pleno entendeu que é perfeitamente possível a cumulação dos ritos (prisão e expropriatório), e que não há violação aos artigos 780 e 798, II, do CPC, por se trataram de regramentos distintos.

O Tribunal de Justiça amazonense acolheu o entendimento exarado pelo relator, que entre outros fundamentos, entendeu que a autorização para o processamento conjunto, nos mesmos autos, dos pleitos pelo cumprimento de sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos, tanto pelo rito da expropriação como da prisão, não viola a disciplina dos arts. 780 e 798, II, do Código de Processo Civil, porquanto estes se relacionam com o procedimento autônomo para execução de títulos executivos extrajudiciais, sendo certo que a questão controvertida diz respeito a dispositivos inseridos em capítulo diverso da lei adjetiva civil e que disciplinam especificamente o procedimento de cumprimento de sentença (...).

Com a máxima vênia, a vedação contida no artigo 780 do Código de Processo Civil diz respeito a toda e qualquer espécie de demanda executiva. Observa-se que o artigo em comento integra o Título I do Livro II do Código, o qual traça disposições gerais para o processo de execução. Nesse contexto, o artigo 771 já delimita que o Livro II abrange tanto as execuções fundadas em títulos executivos extrajudiciais quanto os cumprimentos de sentenças.

Portanto, haveria a cumulação indevida de processos executivos se estivessem em jogo credores diversos, prestações alimentares diversas, fundamentadas em títulos diversos, ainda que direcionadas para o mesmo devedor. Por exemplo: uma demanda executiva de alimentos em que duas irmãs (filhas apenas do mesmo pai) são credoras de débitos distintos e buscam do devedor de alimentos a tutela executiva cumulada. Uma credora postula o pagamento da obrigação alimentar vinculadas a sentença do processo X sob pena de penhora, enquanto a outra credora, requer o pagamento da pensão alimentícia expressa em escritura pública, sob pena de prisão. Nessa situação a cumulação viola o artigo 780 do Código de Processo Civil, porque as dívidas são diversas, porque vinculadas a títulos diferentes, os ritos processuais não se equivalem (um é cumprimento de sentença, enquanto o outro é execução por quantia) e, ainda, porque as partes não são idênticas, embora o devedor seja o mesmo. A ideia do artigo 780 é evitar esse tipo de cumulação de execuções. Não é o caso pretendido no presente estudo.

A ideia que se defende não é a possibilidade de cumulação de execuções. Mas sim, a viabilidade de cumulação ou a conversão de técnicas executivas. Tese que o Superior Tribunal de Justiça já vem abraçando, embora ainda não de maneira vinculante.[21] A dívida alimentar é única, embora de trato sucessivo diante de sua natureza de subsistência e, via de regra, deve ser cobrada pelo processo executivo porque fundamentada num único título executivo judicial ou extrajudicial. Se o código e a jurisprudência já autorizam a cumulação, ainda que de forma subsidiária de medidas típicas e atípicas, por que razão não admitiria a cumulação sucessiva de medidas típicas executivas ou a conversão entre essas mesmas medidas?

O simples apego à lei é uma escusa rasa para negar essa possibilidade. Vale lembrar que o próprio código processual vigente prioriza, a partir de seus princípios fundamentais de processo, a prestação jurisdicional adequada, eficiente, num tempo razoável, embasados no diálogo processual, cooperativo e na boa-fé dos sujeitos processuais. O próprio Centro do Estudos do TJRS anuncia na sua justificativa que a prática de cumulação das modalidades de expropriação e coercitiva tem sido muito disseminada, o que demonstra um certo clamor do jurisdicionado para o acolhimento dessas novas técnicas, como medidas mais céleres e adequadas à melhor prestação jurisdicional.

3. A cumulação sucessiva, simultânea e a conversão de técnicas executivas típicas

No contexto do atual Código de Processo Civil há, notadamente, base principiológica e legal à cumulação de pedidos executivos, bem como à flexibilização procedimental não parece lógico exigir rigidez onde se pode simplificar a bem da adequada e eficiente prestação jurisdicional. Ainda mais quando o próprio sistema de nulidades reclama a efetiva demonstração do prejuízo sofrido pela parte para invalidar qualquer ato supostamente indigno de ser convalidado.

Além disso, toda e qualquer alteração no procedimento, por menor que seja, terá de obedecer a dois critérios inexoráveis para a validade do processo, quais sejam: a fundamentação adequada e a oportunidade de contraditório à parte diretamente atingida. E isso demanda, por obvio, o conhecimento do processo o que se operacionaliza através da leitura e estudo dos autos.

Primeiramente, é importante conceituar o que se entende por cumulação simultânea e sucessiva, e conversão de técnicas executivas. A cumulação simultânea e sucessiva se concretiza a partir da junção dos dois pedidos: primeiro o credor requer o pagamento das obrigações alimentares sob pena de prisão concernente às parcelas que autorizam essa técnica. E, em seguida, mas de forma simultânea, o credor formula o pedido de pagamento de eventual saldo da mesma obrigação alimentar sob pena de penhora. Ainda, é possível requerer, de maneira subsidiária, eventual medida atípica eleita pelo credor, caso a penhora se mostre ineficaz no curso do processo.

Com o intuito de manter a coerência lógica no procedimento, o mandado de citação deve ser redigido com os dois comandos executórios, assim como a defesa do executado deve abraçar tanto a justificativa da impossibilidade de pagar quanto a comprovação do pagamento e, ainda, a oportunidade de impugnação à execução. Cada ato no seu tempo.

Já o pedido de conversão de técnicas é o pedido de pagamento da pensão alimentícia sob pena de prisão e, não sendo possível o seu cumprimento, que seja convertido em penhora no mesmo processo. Podendo, ainda, reiterar o pedido subsidiário de medidas atípicas. A ideia também é de aproveitamento do processo. Observa-se, que o próprio código já prevê essa conversão[22].

Ou seja, técnicas executivas e medidas típicas executivas são, ao fim e ao cabo, termos idênticos. Não se vislumbra a necessidade de que, para cada técnica ou para cada medida, um novo processo tenha de ser distribuído. O mesmo raciocínio se faz para a subsidiariedade da técnica executiva atípica. Tudo acontece no mesmo procedimento.

O argumento utilizado para negar a possibilidade de cumulação simultânea e sucessiva de técnicas executivas na cobrança de alimentos é o tumulto processual, que acaba protelando a prestação jurisdicional. Há uma contraprodução, segundo os desembargadores gaúchos[23].

Dada a máxima vênia, discorda-se deste frágil e raso argumento. O tumulto processual que os desembargadores imaginam inexiste. O devedor de alimentos vai defender-se dos dois comandos judiciais num mesmo procedimento, respeitando os prazos e atos de cada um deles de forma separada.

A crítica ponderada que se faz necessária à Corte Gaúcha vai no sentido de que é preciso sair da zona de conforto. É muito mais fácil analisar o processo que já vem previamente anunciado – Execução de Alimentos pelo rito da prisão. Dessa maneira o raciocínio jurídico do julgador já está direcionado para a verificação dos comandos da comprovação do pagamento, da justificativa ou da confirmação do inadimplemento.

Outra, é a situação do processo executivo remetido ao gabinete sem essa predisposição de ritos. Vai ser preciso analisar com mais atenção, porque pode ser que haja mais de um pedido e isso gera a necessidade de mais tempo de estudo sobre o processo.

Até pode ser que o tempo (hora relógio) de exame de um processo com mais de um pedido seja igual ao tempo de análise de dois processos com um único pedido cada. Mas, ainda assim, em tempos de processo eletrônico, essa duplicidade de procedimento se mostra inadequada. O simples fato de o mandado de citação ser único, e que será cumprido por apenas um oficial de justiça, diminui pela metade os recursos humanos nessa etapa do processo. Só aí já se tem uma redução significativa.

No que tange ao argumento de eventual prejuízo do devedor executado, ao que tudo indica, não se sustenta. Em termos de despesas para as partes, é possível argumentar que mesmo que os custos processuais (custas e sucumbência) possam ser equivalentes ante a somatória dos valores de causa, excetuados os casos de concessão de benefício de assistência judiciária gratuita, o fato de se ter um processo apenas para acompanhar, em termos de honorários contratuais, dará à parte uma redução de despesas.

Portanto, ao que tudo indica, inclusive sob o aval do Superior Tribunal de Justiça, a cumulação de medidas executivas típicas é uma realidade que aos poucos vai se concretizar, justamente diante das novas realidades que a sociedade impõe. A ideia é simplificar. E isso é possível, desde que haja fundamento na decisão e seja oportunizado o contraditório entre as partes.

Considerações finais

A partir dessa breve análise é possível concluir que, embora o Código de Processo Civil vigente ofereça procedimentos diferentes para a cobrança da pensão alimentícia inadimplida, é possível cumular as técnicas executivas num único procedimento, logicamente que no rito da execução por quantia certa e respeitando princípios processuais fundamentais como a motivação das decisões e, obviamente, o contraditório.

O tema veio ao debate como reflexo da pandemia da Covid-19, diante da impossibilidade de decreto de prisão dos inadimplentes e pode-se afirmar que levantou um problema recorrente do credor de alimentos, que na maioria das vezes precisa demandar duas ações para cobrança de uma única dívida. Reconhece-se que a obrigação alimentar é paga mensalmente, sendo de trato sucessivo, mas exigência de cisão da dívida e a necessária distribuição de dois procedimentos gera não apenas ao credor, mas ao sistema judiciário um prejuízo.

Destaca-se que o procedimento pelo rito coercitivo é curto, portanto não acarretaria nenhum prejuízo a sua cumulação no procedimento pelo rito da penhora, por meio de um pedido a mais nesse sentido. Observa-se que ao invés de dois mandados de citação, seria expedido apenas um. Em vez de dois oficiais de justiça para efetivar o cumprimento, seria apenas um. E mais, no caso de ineficácia do cumprimento da ordem de prisão, o próprio código já determina a conversão da medida coercitiva em execução por quantia certa.

Portanto, em nível de perdas, se analisar bem a fundo, apenas o sistema judiciário e o credor é que penam com essa duplicidade de procedimentos. O Superior Tribunal de Justiça já vem entendendo dessa maneira. O Tribunal de Justiça do Amazonas também adotou esse posicionamento. O Tribunal de Justiça Gaúcho, apesar de vanguardista nas questões de família, manteve-se mais apegado ao sistema do CPC e com parcos argumentos editou um enunciado nesse sentido pelo seu Centro de Estudos.

O tema da execução da pensão alimentícia, como afirmado no início, não esgota a pauta. Mas a onda já está em movimento. Observa-se que a questão das medidas executivas atípicas já foi afetada como matéria a ser decidida em sede de repetitivos. Daqui a pouco, quem sabe, esse tópico seja promovido ao novo objeto de unificação da jurisprudência a fim de se concretizar como um precedente, aí sim, vinculante com o intuito de confortar mais segurança jurídica aos jurisdicionados.

 

Referências Bibliográficas

ASSIS, Araken. Manual da execução.18.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos bocados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Agravo de Instrumento, nº 51115191620228217000, Oitava Câmara Cível, rel. Des. Rui Portanova, julgado em: 09-06-2022.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Agravo de Instrumento, nº 52409581720218217000, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Vera Lucia Deboni, julgado em: 15-12-2021.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Habeas Corpus Cível, nº 70085433092, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Sandra Brisolara Medeiros, julgado em: 17-12-2021.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Habeas Corpus Cível, nº 50126761620228217000, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Roberto Arriada Lorea, julgado em: 28-01-2022.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Agravo de Instrumento, nº 51947073820218217000, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em: 25-01-2022.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Agravo de Instrumento, nº 51729932220218217000, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Jane Maria Köhler Vidal, julgado em: 04-04-2022.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Agravo de Instrumento, nº 70084899475, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em: 13-05-2021.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, Enunciados do Centro de Estudos. Disponível em https://www.tjrs.jus.br/novo/centro-de-estudos/. Acesso em 13 de abril de 2023.

VIANA, Rafaella. Flexibilidade Procedimental. Disponível em https://rafinhamurad.jusbrasil.com.br/artigos/265832060/flexibilidade-procedimental. Acesso em 04 de abril de 2023.

 



[1] DIAS. Maria Berenice. Alimentos aos bocados. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 233.

[2] ASSIS, Araken. Manual da execução.18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.1297.

[3] O cumprimento de sentença, segundo Araken de Assis, é uma expressão imprópria justamente porque a decisão interlocutória, que fixe alimentos, executa-se por esse regime. ASSIS, Araken. Manual da execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1293.

[4] ASSIS, Araken. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1298.

[5] ASSIS, Araken. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1298.

[6] ASSIS, Araken. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1298.

[7] VIANA, Rafaella. Flexibilidade Procedimental. Disponível em https://rafinhamurad.jusbrasil.com.br/artigos/265832060/flexibilidade-procedimental. Acesso em 04 de abril de 2023.

[8] GAJARDONI, Fernando. Flexibilidade procedimental (um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual). Tese de doutorado. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-06082008-152939/publico/FERNANDO_TESE_COMPLETA_PDF.pdf. Acesso em 04/04/2023. p. 81.

[9] GAJARDONI, Fernando. Flexibilidade procedimental (um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual). Tese de doutorado. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-06082008-152939/publico/FERNANDO_TESE_COMPLETA_PDF.pdf. Acesso em 04/04/2023. p. 81.

[10] DINAMARCO, Cândido Rangel. CARRILHO, Bruno Vasconcelos Lopes. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 51.

[11] DINAMARCO, Cândido Rangel. CARRILHO, Bruno Vasconcelos Lopes. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 51.

[12] Artigo 530 do CPC remete o credor ao procedimento de penhora, caso haja o descumprimento da ordem de pagamento mesmo após o cumprimento da medida coercitiva de prisão.

[13] Agravo de Instrumento, nº 51648596920228217000, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em: 01-12-2022.

[14] Agravo de Instrumento, nº 70061412078, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, julgado em: 30-10-2014. Habeas Corpus, nº 70077541993, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, julgado em: 30-04-2018. Agravo de Instrumento, nº 50464166220228217000, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, julgado em: 22-10-2022. Agravo de Instrumento, nº 50884461520228217000, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jane Maria Köhler Vidal, julgado em: 02-09-2022.

[15] Agravo de Instrumento, nº 51115191620228217000, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, julgado em: 09-06-2022.

[16] REsp n. 2.004.516/RO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 21/10/2022.

[17] Resp. 1.914.052/DF, Terceira Turma do STJ, Relator: Marco Aurélio Bellizze, julgado em: 22/6/2021. Agravo de Instrumento, nº 52409581720218217000, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vera Lucia Deboni, julgado em: 15-12-2021. Habeas Corpus Cível, nº 70085433092, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, julgado em: 17-12-2021. Habeas Corpus Cível, nº 50126761620228217000, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Roberto Arriada Lorea, julgado em: 28-01-2022. Agravo de Instrumento, nº 51947073820218217000, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em: 25-01-2022.

[18] Agravo de Instrumento, nº 51729932220218217000, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jane Maria Köhler Vidal, julgado em: 04-04-2022. Agravo de Instrumento, nº 70084899475, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em: 13-05-2021. STJ -HC n. 562.002/GO, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 6/10/2020, DJe de 29/10/2020.

[19] Agravo de Instrumento, nº 51648596920228217000, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em: 01-12-2022.

[20] IRDR-AM 000423243.2018.8.04.0000, julgado em outubro de 2019.

[21] REsp n. 1.930.593/MG, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 26/8/2022. REsp n. 2.004.516/RO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 21/10/2022.

[22] Artigo 530 do Código de Processo Civil de 2015.

[23]  Enunciado número 22 do Centro de Estudos do TJRS: 22ª – Não deve ser admitida, em um mesmo processo, de forma simultânea ou sucessiva, a execução de alimentos pela via expropriatória e coercitiva. (Unanimidade). Justificativa: Prática muito disseminada tem sido a de cumular, de forma simultânea ou sucessiva, em uma mesma execução de alimentos, as modalidades expropriatória e coercitiva. Tal praxe tem se mostrado contraproducente, por gerar, de regra, acérrimos tumultos processuais, que somente protelam a entrega da prestação jurisdicional. Cumpre, pois, evitá-la, com a determinação de que , em havendo débito alimentar composto por mais de três parcelas, sejam propostas, simultaneamente, execuções separadas, com seus ritos próprios (arts. 732 e 733, CPC) e tramitação independente, o que certamente representará economia processual. PRECEDENTES: AI 598527901 (7ª C. Cível); AI 599177565 (8ª C. Cível); AI 599177037 (8ª C. Cível); AI 599247897 (7ª C. Cível); AI 598056125 (7ª C. Cível); AI 596149641 (7ª C. Cível).

Artigo- A tirania do homem medíocre

 

Artigo do associado do IARGS, Dr. Tiago Fürst, advogado, especialista em Direito Penal (UFRGS) e Tributário (IBET) e professor de Filosofia (Nova Acrópole)
Tema: A tirania do homem medíocre

A democracia se tornou um ideal a ser alcançado por todas as sociedades livres. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, em seu artigo XXIX, reza que, no exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano está sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, devendo respeitar os direitos e liberdades dos outros e “satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”. 

Em 1997, em reunião realizada pela ONU no Egito, com representantes de 128 países, foi aprovada a Declaração Universal da Democracia, com a finalidade de alinhavar conceitos fundamentais para o desenvolvimento da humanidade. Nela, são apresentados os princípios da democracia, com o destaque, logo no primeiro parágrafo, para o reconhecimento de que ela é um “ideal universalmente reconhecido”, baseado em valores compartilhados pelos povos de todo o mundo, constituindo-se em um direito básico de cidadania. 

Nesse primeiro quarto do Séc. XXI, porém, a democracia está em crise. Até mesmo nos Estados Unidos, paradigma de sucesso democrático, com instituições sólidas e consolidadas, o sistema político e eleitoral tem sido colocado em xeque. No Brasil, não é diferente. Mas será esse um fenômeno recente? O Séc. XX, com suas grandes guerras mundiais, não experimentou algo parecido? E a Atenas do Séc. V a.C., berço do regime democrático? 

A mais antiga e profunda referência em termos de filosofia e ciência política é encontrada na obra de Platão (427 - 347 a.C.), notadamente no diálogo “A República”. No Livro VIII, Platão expõe pela primeira vez, através do personagem Sócrates, as cinco formas de governo, cada uma delas decorrente das cinco espécies de alma (ou caráter) das pessoas. São elas a aristocracia (governo dos melhores, o qual, quando exercido por apenas um indivíduo, será denominada monarquia, ou governo do melhor); a timocracia (governo das honras); a oligarquia (governo de poucos); a democracia (governo de muitos) e a tirania (governo de um tirano). 

Assim, não tem cabida uma interpretação exclusivamente política do diálogo. A construção da “Politeia” platônica, ou do Estado Ideal, repousa em pressuposto anunciado já no Livro II. Em busca do que seja a Justiça, o personagem Sócrates propõe uma ampliação de escala para facilitar a abordagem: passar, no curso da investigação, de um plano reduzido, restrito ao homem, a um plano maior, da cidade, no qual poder-se-ia tratar do tema em uma perspectiva mais abrangente. Platão busca conhecer e formar o Estado perfeito (Ideal) para conhecer e formar o homem perfeito (indivíduo). Nas palavras de Giovanni Reale: “Se é verdade que o Estado é uma projeção ampliada da alma, não menos verdade é que, finalmente, a sede autêntica do verdadeiro Estado e da verdadeira política é justamente a alma, e a verdadeira cidade é a cidade interior, que não está fora, mas dentro do homem.” (REALE, 1994, p. 243). 

Na concepção platônica, o Estado é a Ideia unificadora da Justiça, que se manifesta de diferentes formas, por meio da harmonia entre governantes e governados. Para Platão, a sociedade é a reunião de seres humanos no melhor interesse de cada um, de modo a suprir as necessidades de todos. Porém, não há Estado sem uma Ideia unificadora, assim como não há indivíduo (ou aquele que não se divide) sem uma formação humana integral, uma educação para a ética, para uma forma de vida moral (PLATÃO, 2000, p. 216). 

Para o sábio grego, uma sociedade justa e harmônica (Estado) só é possível se as pessoas que a constituem sejam, elas próprias, justas e harmonizadas (indivíduos): o coletivo (sociedade) é a soma das suas partes (seres humanos). Platão, que presenciou a decadência da democracia ateniense, com suas alternâncias entre oligarquia e tirania, defendia a aristocracia (governo dos melhores). Quando o indivíduo é incapaz de manter a integridade, tudo se corrompe, inclusive no coletivo. Para ele, tal virtude é adquirida e cultivada pela educação. 

José Ingenieros (1877 - 1925), um dos filósofos sul-americanos mais influentes do Séc. XX, resgata as ideias de Platão. Em seu livro “O Homem Medíocre”, o autor argentino discorre sobre a emoção do ideal: um impulso misterioso em direção ao que há de mais sublime, aos ensinamentos dos grandes sábios (como Sócrates, Platão, Jesus Cristo, Giordano Bruno), à Beleza e à Verdade. Segundo ele, tal impulso deve ser custodiado internamente, para que nunca se apague, e cultivado pela educação (INGENIEROS, 2017, p. 15). 

Segundo Ingenieros, não se deve esperar nada dos homens que entram na vida sem se entusiasmarem por algum ideal. Não se nasce jovem; é preciso adquirir a juventude. E, sem ideal, não é possível adquiri-la. Para criar uma partícula de Verdade, de Virtude, de Beleza, é necessário muito esforço. Porém, a maioria dos homens não trilha esse caminho: a eles o autor denomina “homem medíocre”. Para ele, a desigualdade humana é inegável, e tem sua origem na própria natureza. A mediocridade seria a ausência de características pessoais que permitam distinguir o indivíduo em sua sociedade. É através da educação que o homem adquire as ferramentas necessárias para se tornar um indivíduo, um pensador de si próprio. 

A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal. São incapazes de virtude; ou não a concebem, ou ela lhes exige demasiado esforço. Trocam a sua honra por um cargo. Para evitar um perigo, renunciariam a viver. A moral do homem virtuoso reside na intenção e na finalidade das suas ações; se reflete mais nos feitos e na conduta exemplar do que nas palavras. A mediocridade é hipócrita e se preocupa mais com as aparências. O culto das aparências conduz ao desdém da realidade. O hipócrita não aspira a ser virtuoso, mas somente a parecê-lo: quer ser contado entre os virtuosos, mas somente pelos cargos e pelas honras que tal condição pode proporcionar. 

Nesse clima de mediocridade, em que a mera honestidade é considerada uma grande virtude, surge o que o autor denomina mediocracia, ou o governo dos medíocres. Os Estados tornam-se mediocracias na medida em que a virtude desaparece. Para ele, isso ocorreu na Europa na primeira década do século XX. Quando o principal objetivo das sociedades está voltado à acumulação de bens materiais, se apaga do espírito coletivo todo vestígio da moral. Os que governam, todavia, não criam tal estado de coisas e de espírito: apenas representam-no. A mediocracia é um sinal da decadência moral, gerando uma tirania que demanda ser nivelado ou sucumbir. Assim como Platão, Ingenieros aponta a solução para a crise da democracia: fomentar a virtude e valorizar o trabalho daqueles que, por esforço próprio e através da educação formativa, reúnem as capacidades necessárias para conduzir os processos políticos, pois conduzem a si mesmos. 

 Existem muitas análises contemporâneas sobre a crise da democracia. HansHerman Hoppe, na obra “Democracia: o Deus que falhou” (2001), foi um dos primeiros escritores contemporâneos a criticar abertamente a democracia. Para ele, trata-se de uma máquina de destruição de riqueza, de desperdício econômico e de empobrecimento, além de uma causa sistemática de corrupção moral e degeneração. Ao constatar a crescente integração forçada dos países e a homogeneização cultural, propõe a descentralização de poder e o enfraquecimento do Estado. Sua análise está centrada no direito de propriedade. A democracia deve ser considerada uma decadência em relação à monarquia porque nesta, a propriedade é privada, ao passo que a democracia é um governo de propriedade pública e cada vez mais coletiva (HOPPE, 2014, p. 26). 

Segundo o autor alemão, essas duas formas de governo – a da propriedade privada governamental (monarquia) e a da propriedade pública governamental (democracia) – se configuram a partir da decadência civilizatória da primeira (baseada na autoridade natural e no mérito pessoal) em direção à segunda (baseada na guerra e na revolução das massas). Não obstante, Hoppe enxerga na conduta de todos, governantes e governados, apenas o interesse próprio, egoísta, voltado à aquisição e manutenção da propriedade privada. Será o sentimento de justiça ou de injustiça em relação à distribuição dos bens que reduzirá ou aumentará as taxas de criminalidade. O autor não se propõe a analisar a formação moral dos cidadãos: o que ele denomina “descivilização progressiva” (infantilização e desmoralização da sociedade civil) tem suas causas, basicamente, no aumento da tributação e na má-distribuição da riqueza. Portanto, a solução proposta pelo autor é, por óbvio, materialista: as pessoas deveriam simplesmente deixar de consentir e de se dispor a cooperar com o Estado, negando-se ao pagamento de impostos, promovendo a sua deslegitimação perante a opinião pública e convencendo os demais a fazerem o mesmo (HOPPE, 2014, p. 303).

David Runciman, no livro “Como a democracia chega ao fim” (2017), constata que a democracia se tornou o “padrão ouro” de legitimidade no Séc. XX. Poucos regimes políticos, mais ou menos autoritários e desiguais, abriram mão desse símbolo para descreverem a si mesmos. Porém, no Séc. XXI, precisamos levar mais a sério a ideia de que a democracia chegará ao seu fim. O autor inglês, que é professor de política na Universidade de Cambridge, analisa a eleição de Donal Trump nos Estados Unidos e a decisão do Reino Unido de se retirar da União Europeia (“Brexit”), ambos ocorridos em 2016, para indagar se a democracia, tal como a conhecemos, ainda é a melhor forma de organização política. Para ele, o “futuro pós-democrático” permanece em aberto, mas aposta que, em linhas gerais, a política vai se tornar mais local, individualista e populista e, ao mesmo tampo, mais global, conectada em rede e tecnocrática. 

Ao longo da obra, Runciman expõe algumas possibilidades e alternativas à democracia representativa contemporânea (que para o autor é o melhor regime, pois nele se goza de certas garantias e se é respeitado como pessoa, porque “todo o voto conta”): o “autoritarismo pragmático”, uma forma de monarquia absoluta em que é possível um crescimento econômico acelerado, mesmo que à custa das liberdades individuais, como é o caso da China; a “epistocracia”, ou “o governo daqueles que sabem”, onde somente os mais esclarecidos poderiam votar e ser votados, de modo a evitar o que que as decisões sejam tomadas de forma irracional, como ocorria, segundo o autor, na Grécia Antiga; e a “tecnologia liberada”, uma espécie de anarquia digital, em que o Estado seria mínimo e as pessoas teriam autonomia através de redes autossustentadas (RUNCIMAN, 2018, PP. 221-233). 

Da leitura dos pensadores contemporâneos, fica evidente a lacuna em relação ao cerne da questão: nosso foco, atualmente, é nas coisas e nos sistemas, e não nas pessoas. Já nos pensadores clássicos, como Platão e Ingenieros, o fator humano, especialmente no que diz respeito à formação ética e moral dos cidadãos, é preponderante. Nesse aspecto, é necessário um resgate dos clássicos, de modo a superar a visão materialista e unidimensional do ser humano, típica das análises de nossa época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOPPE, Hans-Herman. Democracia: o Deus que falhou. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2014. 
INGENIEROS, José. O homem medíocre. 2ª ed. São Paulo: Ícone, 2017. 
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000. 
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, Vol. II. São Paulo: Loyola, 1994. 
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.