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terça-feira, 16 de junho de 2020

Mudanças radicais no sistema de Justiça na pandemia da Covid-19




Artigo do Dr Jorge Alberto Araujo, Juiz Titular da 5ª Vara do Trabalho de Porto Alegre e associado do IARGS


Recordo que, há alguns anos, era bastante comum ocorrer a escassez de alguma coisa, por motivos diversos. De água a energia elétrica, passando por feijão, leite, carne de gado e até mesmo dinheiro, no início do Governo Collor para dar apenas alguns exemplos. 

Cada uma destas escassezes gerou pequenas mudanças de hábitos ou de tecnologia. A falta de água nos ensinou a lavar a louça com menos água, de energia a apagar mais as luzes e preferir lâmpadas fluorescentes e desenvolver as de led, as de alimentos optar por alternativas como soja ou carne suína, respectivamente para a falta de feijão e carne de gado, ou ainda utilizar freezers domésticos para armazenamento. Houve ainda algo que nos fez desenvolver o hábito de comprar quantidades grandes de papel higiênico, mas desta eu não recordo. 

O ser humano evolui na falta, não na abundância. A Depressão e as duas Grandes Guerras certamente trouxeram mais avanço e mudanças de hábitos do que as épocas de paz e abundância que as precederam. Diz-se que energia produzida pelo vapor já era conhecida na Roma Antiga, mas apenas fez sentido quando precisamos fazer render ainda mais a energia para produção durante a Revolução Industrial. 

A pandemia da Covid-19, as medidas de distanciamento físico e preferência pelo trabalho em domicílio nos apanharam com toda a tecnologia adequada para a realização deste tipo de atividade. Se os eventos atuais tivessem ocorrido há cerca de 10 anos, quando recém havia sido criado, por exemplo, o aplicativo de comunicação mais popular para smartphones, o WhatsApp, certamente teríamos muito mais dificuldades em nos adaptarmos à realidade das reuniões por vídeo-conferência. 

Ainda assim fomos pegos de surpresa. Esquecemos de colocar muitas coisas na mala, se temos que partir de surpresa, no meio da noite. Assim as adaptações necessárias para que possamos realizar alguns atos processuais, que eram realizados pessoalmente de maneira telepresencial ainda estão em curso. Por exemplo as webcams praticamente sumiram do mercado e as que remanesceram tiveram o preço absurdamente inflado, quase da mesma forma como respiradores ou equipamentos de proteção individual. Isso não significa, no entanto, que não possamos ou não devamos começar a nos adaptar. O que não colocamos na mala de viagem temos que comprar no caminho e algumas das competências que nos faltavam, como consultar um mapa ou nos guiar pelo GPS são coisas que vamos aprendendo pela necessidade. Há bem pouco tempo, também à nossa revelia, os autos processuais migraram completamente para o meio eletrônico e hoje em dia ninguém reclama de os ter que acessar na “nuvem”, pelo contrário louvamos a sua possibilidade de acesso. 

Da mesma forma a realização das audiências de forma telepresencial, possibilidade assustadora até um tempo atrás, parece ser uma excelente notícia. 

Em primeiro lugar há de se observar a facilidade que isso representa em termos de acesso à prova. Se até hoje tivemos dificuldades para a produção de prova oral em certas circunstâncias, principalmente quando as testemunhas se esquivavam de prestar depoimento alegando compromissos profissionais, agora, com a viabilidade do depoimento telepresencial, poderíamos contar com este depoimento tomado de forma remota. Se a testemunha para comparecer para prestar depoimento presencial poderia perder um turno ou um dia completo de trabalho, com ela própria, se empresária ou profissional liberal, ou seu empregador, em se cuidando de trabalhador subordinado, arcando com o custo correspondente, agora este depoimento poderá ser tomado de forma remota, a partir de seu local de trabalho, o que representará uma interrupção correspondente, tão somente, ao período de duração de uma audiência. 

Por outro lado preocupações, legítimas diga-se de passagem, em relação à idoneidade do depoimento quer pelo acesso aos depoimentos anteriores, quer pela orientação por partes ou advogados inescrupulosos no curso do testemunho, tendem a se dissipar levando-se em consideração que o depoimento será gravado e disponível às partes e, inclusive, a instância recursal. É imperioso registrar que, salvo profissionais de comunicação excepcionais, dificilmente uma pessoa comum conseguirá receber orientações no curso de um depoimento seja por escrito (por exemplo por teleprompter), seja oralmente (por exemplo pela presença de alguém atrás da câmara ou por fones de ouvidos), sem que isso seja perceptível por quem a observa pelas câmaras. 

Já há tecnologia para a realização de testes de conhecimento de forma remota em que a observância de certos protocolos, como permanecer sozinho no ambiente e manter os olhos fixos na tela, são suficientes para assegurar a sua validade. Por outro lado temos que ter em conta que geralmente nos processos judiciais há pelo menos um profissional do Direito ao lado de cada uma das partes e que estes, igualmente, estão eticamente comprometidos com a lisura e sucesso do procedimento. 

Provavelmente teremos, ainda, a necessidade de aperfeiçoamentos legislativos para melhorar a prática de atos processuais por videoconferência, no entanto não podemos deixar de aproveitar, ainda agora, quando não estávamos suficientemente preparados, para já irmos nos habituando com as novidades que nos estão sendo impostas e catalisadas pela pandemia.

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