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terça-feira, 29 de setembro de 2020

O crescente número de registros de testamentos e a renúncia à herança

Artigo da advogada e administradora de empresas, Dra Isolda Berwanger Bohrer

Completam-se seis meses do início do distanciamento social. Inesperadamente tivemos de nos adaptar a uma série de situações jamais vivenciadas por nossa geração. 

Pensar no futuro após a morte deixou de ser mera probabilidade para ser uma necessidade. E a importância do trabalho dos aplicadores do Direito de Família e das Sucessões atualmente está em evidência, trazendo respostas às tantas dúvidas dos cidadãos. Os cartórios do Rio Grande do Sul têm registrado um aumento considerável de registros de testamentos nesses últimos meses.[1]

A busca pelo planejamento sucessório vem crescendo. As pessoas estão se dando conta de que o melhor caminho é deixar a vida organizada, mas também programar-se para quando não estiverem mais aqui. 

De fato, a maior longevidade da população brasileira e o fenômeno sempre crescente das famílias recompostas são fatores que muito contribuem para a necessidade de um planejamento sucessório.[2] E o testamento é o cerne do planejamento sucessório (Art. 1.857, CC). É ele que pode determinar não só disposições patrimoniais, mas também tantas outras como, por exemplo, o reconhecimento de filhos e disposições sobre o funeral. 

Em relação a sua elaboração, alguns aspectos exigem uma maior atenção, pois a sua feitura de forma apressada poderá provocar resultado contrário ao desejado. A partir do planejamento da sucessão hereditária, pode-se assegurar as melhores formas para que as aspirações da pessoa sejam concretizadas após seu falecimento. O testamento deve estar em sintonia com a lei e não deve conter vícios em seu conteúdo ou na sua forma; do contrário, o mesmo pode vir a ser anulado, no todo ou em parte. 

Uma boa alternativa seria se as escolhas sobre o futuro do relacionamento do casal fossem feitas no termo inicial. Porém, nem sempre é o que acontece. Dificilmente os partícipes procuram um advogado para casar ou iniciar uma união. A maioria daqueles que procuram profissionais do Direito de Família e Sucessões para fazer este contrato inicial, ou são do ramo do Direito, ou já tiveram experiências frustrantes em anteriores dissoluções. 

Legítima, pacto sucessório e renúncia têm sido discutidos com ênfase ultimamente. Conforme o art. 426 CC, a lei proíbe contratar herança de pessoa viva, mesmo em se tratando de consorte, e sob as vestes de uma convenção antenupcial, pois, aos olhos da legislação vigente, se trata de objeto ilícito.[3] Só este ponto pode desestimular as pessoas a desistirem de uma herança por antecipação. 

Renúncia não deve ser feita antes da abertura da sucessão, pois isto implicaria em pacto sucessório, legalmente proibido.[4] Nosso ordenamento jurídico continua firme na afirmação de que a renúncia antecipada da herança seria um negócio jurídico ilícito, impossível ou indeterminável (Art. 166, II, CC).[5]

Ademais, a possibilidade de renunciar, além da necessidade da espera da abertura da sucessão – morte – deve seguir o que diz o Art. 1.806 CC, ou seja, constar expressamente de instrumento público (no Tabelionato de Notas), por termo judicial ou termo nos próprios autos do processo de inventário, não tendo validade a outorga por instrumento particular.[6]

Vale dizer que, se o testador tiver a intenção de afastar um herdeiro através de um termo particular de renúncia, caberá ao advogado esclarecer que este documento não teria eficácia garantida e serviria para criar uma falsa expectativa ao testador. 

Seria interessante acrescentar que o herdeiro renunciante, após cumprir os requisitos para tal, é excluído da herança e tratado como se nunca tivesse existido, (Art. 1.804 CC, parágrafo único).[7] Seus filhos não poderiam herdar por representação. Se porventura o renunciante for o único filho, seus filhos serão chamados a herdar por direito próprio (Art. 1.811 CC). 

Em uma situação peculiar, em que um dos cônjuges, casado sob o regime de comunhão universal de bens, deseja abrir mão do bens particulares em favor do outro, tem a possibilidade de renunciar à meação; porém, é válido dizer que a renúncia à meação só poderá ser objeto de cessão por escritura pública, a título gratuito ou oneroso, com incidência de imposto de transmissão inter vivos. 

Pode haver intenção de um herdeiro querer renunciar à herança em favor de um dos seus genitores. Essa possibilidade existe caso o filho seja único ou se toda a classe de filhos renunciasse e, ainda, não houvesse algum neto ou ascendente.[8]

Um detalhe constante no Art. 1.808 CC é o de que a herança não pode ser aceita ou renunciada em parte. Não se pode aceitar parte da herança e recusar o restante que também tocaria pelo mesmo título.[9]

Segundo Maria Helena Diniz, “nada obsta, havendo dupla sucessão, a legítima e a testamentária, que o herdeiro renuncie inteiramente a sucessão legítima, conservando a outra ao aceitar a herança advinda de testamento; só se lhe proíbe a aceitacão parcial da herança.”[10]

Desde a edição do Código Civil de 2002, juristas e jurisdicionados têm buscado soluções para superar alguns impasses. Ainda que em minoria, há doutrina que defenda a extinção do pacto sucessório (pacta corvina) e a flexibilização da legítima. Questiona-se a excessiva intervenção estatal na seara conjugal e afetiva, engessando conceitos.[11]

Outro ponto questionado, ainda, é em relação ao regime da separação de bens após aberta a sucessão. O pensamento é o de que seria lógica a conclusão advinda de duas pessoas que se casam escolhendo o regime de separação absoluta de bens, que seus bens não se comunicassem após a morte de um dos cônjuges.[12]

Mas... e se o testamento e o termo de renúncia fossem originados no estrangeiro, referindo bens situados no exterior, e pertencentes a cidadão brasileiro residente no Brasil, será que haveria alguma chance de prosperarem, se não estivessem em conformidade com a lei brasileira? 

Levando em consideração a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro em seu Art. 10 e, ainda, no Art. 48 CPC, não haveria chance de terem eficácia. 

Bom, mas este assunto exigiria um novo artigo.[13]


[1] Jornal Zero Hora de 11/09/2020: “Registros de testamentos em cartórios do RS têm aumento de 187% durante a pandemia. 

[2] IBDFAM. Artigo de Ana Luiza Maia Nevares. Como fazer testamento em momento de isolamento social. 26/03/2020. 

[3] MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Pgs. 24 e 25. 

[4] GOMES, Orlando. Sucessões. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 25. 

[5] RECURSO ESPECIAL Nº 1.433.650 - GO (2013/0176443-1) RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE : CONCEIÇÃO MARCIANO DE ANDRADE RECORRENTE : LAUDELINO MARCIANO DA SILVA ADVOGADOS : DIOGO LUIZ FRANCO DE FREITAS - GO026320 VERA LUCIA RODRIGUES BATISTA - GO031096 RECORRIDO : LÚCIA GONÇALVES VILELA RECORRIDO : HÉLIO VILELA ADVOGADO : JOSÉ BEZERRA COSTA E OUTRO(S) - GO001820 EMENTA RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO. RENÚNCIA À HERANÇA. ATO FORMAL E SOLENE. ESCRITURA PÚBLICA. ATO NÃO SUJEITO À CONDIÇÃO OU TERMO. EFEITO DA RENÚNCIA: RENUNCIANTES CONSIDERADOS COMO NÃO EXISTENTES. 1. A qualidade de herdeiro legítimo ou testamentário não pode ser compulsoriamente imposta, garantindo-se ao titular da vocação hereditária o direito de abdicar ou declinar da herança por meio da renúncia expressa, preferindo conservar-se completamente estranho à sucessão. 2. Ao contrário da informalidade do ato de aceitação da herança, a renúncia exige forma expressa, cuja solenidade deve constar de instrumento público ou por termos nos autos (art. 1807), ocorrendo a sucessão como se o renunciante nunca tivesse existido, acrescendo-se sua porção hereditária à dos outros herdeiros da mesma classe. 3. A renúncia e a aceitação à herança são atos jurídicos puros não sujeitos a elementos acidentais. Essa a regra estabelecida no caput do art. 1808 do Código Civil, segundo o qual não se pode aceitar ou renunciar a herança em partes, sob condição (evento futuro incerto) ou termo (evento futuro e certo). 4. No caso dos autos, a renúncia operada pelos recorrentes realizou-se nos termos da legislação de regência, produzindo todos os seus efeitos: a) ocorreu após a abertura da sucessão, antes que os herdeiros aceitassem a herança, mesmo que presumidamente, nos termos do art. 1807, do CC/2002; b) observou-se a forma por escritura pública, c) por agentes capazes, havendo de se considerar que os efeitos advindos do ato se verificaram. 5. Nessa linha, perfeita a renúncia, considera-se como se nunca tivessem existido os renunciantes, não remanescendo nenhum direito sobre o bem objeto do negócio acusado de nulo, nem sobre bem algum do patrimônio. 6. Recurso especial não provido. Data Julgamento: 19/11/19. (grifo) 

[6] AgInt no AREsp 1585676 / PR
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
2019/0279759-7 AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E
CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES.
1. A parte agravante refutou, nas razões do agravo em recurso
especial, a aplicação da Súmula 83/STJ, não incidindo, portanto, o
óbice da Súmula 182/STJ.
2. Não há falar em violação ao art. 1.022 do Código de Processo
Civil, pois o Tribunal a quo dirimiu as questões pertinentes ao
litígio, afigurando-se dispensável que tivesse examinado uma a uma
as alegações e os fundamentos expendidos pelas partes.
3. A natureza jurídica da ação não se determina pela denominação
atribuída pelo autor no momento da propositura da demanda, mas pelo
objeto perseguido efetivamente, com análise sistemática do pedido e
da causa de pedir deduzidos na inicial, nascendo justamente dessa
análise a definição do prazo de prescrição ou decadência.
4. Na espécie, a pretensão autoral refere-se à declaração de
nulidade de partilha efetivada pela inobservância de formalidades
essenciais, devendo ser afastada a incidência do prazo ânuo previsto
nos arts 2.027, parágrafo único, do Código Civil e 1.029, parágrafo
único, do CPC/1973.
5. A renúncia da herança é ato solene, exigindo o art. 1.806 do
Código Civil, para o seu reconhecimento, que conste "expressamente
de instrumento público ou termo judicial", sob pena de nulidade
(art. 166, IV) e de não produzir qualquer efeito, sendo que "a
constituição de mandatário para a renúncia à herança deve obedecer à
mesma forma, não tendo validade a outorga por instrumento
particular" (REsp 1.236.671/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 09/10/2012, DJe 04/03/2013).
6. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão de fls.
880-881. Agravo em recurso especial não provido.

[7] MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Pg. 65. 

[8] REsp 36.076/MG – 1.ª T.- STJ - j.03.12.1998- Rel. Min. Garcia Vieira 

Ementa: A renúncia de todos os herdeiros da mesma classe, em favor do monte, não impede seus filhos de sucederem por direito próprio ou por cabeça. Homologada a renúncia, a herança não passa à viúva, e sim herdeiros remanescentes. Esta renúncia não configura doação ou alienação à viúva, não caracterizando o fato gerador do ITBI, que é a transmissão da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis.
Recurso provido 

[9] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 7: Direito das Sucessões. 7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Pg. 98. 

[10] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Sucessões. 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, v. 6, p. 90. 

[11] MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Pg. 25. 

[12] Ibidem. E Resp 992.749-MS. 
[13] RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO INTERNACIONAL
PRIVADO. AÇÃO DE DIVÓRCIO. PARTILHA DE BENS ADQUIRIDOS NA
CONSTÂNCIA DA UNIÃO E, APÓS, O CASAMENTO. BENS LOCALIZADOS NO EXTERIOR.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA BRASILEIRA PARA A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS E
OBRIGAÇÕES RELATIVOS AO DESFAZIMENTO DA INSTITUIÇÃO DA UNIÃO E DO
CASAMENTO. OBSERVÂNCIA DA LEGISLAÇÃO PÁTRIA QUANTO À PARTILHA
IGUALITÁRIA DE BENS SOB PENA DE DIVISÃO INJUSTA E CONTRÁRIA ÀS
REGRAS DE DIREITO DE FAMÍLIA DO BRASIL. RECONHECIMENTO DA
POSSIBILIDADE DE EQUALIZAÇÃO DOS BENS. PRECEDENTE. DISSÍDIO
JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE. RECURSO ESPECIAL A QUE SE
NEGA PROVIMENTO. 
REsp 1410958 / RS RECURSO ESPECIAL 2011/0244043-3T3 - TERCEIRA TURMA - Data do Julgamento: 22/04/2014 - Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO

domingo, 27 de setembro de 2020

IARGS é representado por diretora na Expointer Digital 2020

A diretora do Departamento de Integração do IARGS, Ana Amélia Prates, irá representar o instituto, no dia 29 de setembro, no Escolha + da Expointer Digital 2020. Ela participará, às 18h30, ao vivo, no Canal 3 na plataforma digital da feira, direto de Esteio. O programa é inteiramente dedicado à força da mulher no Agronegócio brasileiro e a apresentação será feita pela jornalista Camilla Menezes. O acesso aos canais da Expointer Digital é gratuito pelo site www.expointer.rs.gov.br. Não é necessária inscrição.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Quando a vítima é mulher

 

Artigo da Desembargadora aposentada do TJ/RS, Dra Maria Berenice Dias, advogada especializada em Direito Homoafetivo, Direito das Famílias e Sucessões

Onde estão as mulheres? Alguém consegue responder a esta pergunta? Até porque as mulheres nunca ocuparam espaço nenhum. Sempre foram invisíveis. Jamais fizeram parte da história ou da vida pública. 

Não lhes era permitido ter vontade própria. Não tinham sequer o direito de sonhar. Foram adestradas para o casamento. Era somente o que podiam almejar. 

A esposa devia obediência ao marido. Sua única responsabilidade era cuidar da casa e criar os filhos. E precisava ser bela, recatada e do lar. 

Fizeram a mulher acreditar que sua honra estava em manter as pernas fechadas. A virgindade tinha valor. Tudo isso para o homem ter certeza de ser ele o pai dos filhos da sua mulher. Aliás, a presunção da paternidade ainda está prevista no Código Civil. Pelo jeito, o que a lei pressupõe é a fidelidade da mulher. 

O espaço público sempre foi masculino. A mulher restou confinada no limite doméstico. Tal enseja a formação de dois mundos: um de dominação e outro de obediência. A essa distinção estão associados papéis ideais: o homem de provedor da família e a mulher o cuidado do lar e dos filhos. A sociedade outorga ao sexo masculino um papel paternalista, exigindo do sexo feminino uma postura de submissão. O poder feminino era restrito ao âmbito doméstico. Ainda hoje a esposa é considerada a rainha do lar! Um reinado sem coroa, sem manto, sem cetro. E quem seria o rei? O homem detinha tinha a autoridade familiar e se arvorava o direito de punir, tanto os filhos como a mulher. 

Isso mudou? Quando? E em que medida? 

Apesar do significativo aumento de sua participação na sociedade, as mulheres ainda ganham menos e não ocupam as instâncias de poder em número igualitário. 

Avanços vêm acontecendo em muitas frentes, menos no âmbito político. Mesmo com reserva de cotas e a garantia de acesso às verbas do fundo partidário em percentual de 30%, rarefeita é sua presença entre os eleitos. O que evidencia que são inseridas como candidatas apenas para garantir o acesso de mais homens na eleição. 

Aliás, se somos mais da metade da população e mais da metade do eleitorado, nada justifica termos assegurado somente um terço das candidaturas aos parlamentos. 

Claro que a motivação – ou a falta dela – diz com a posição da mulher no mundo privado. Ela ainda está submetida à crença de que sua função primordial é ser mãe e a responsável pela administração da casa. Como se libertar destes encargos sem o sentimento de culpa? Até porque, de tais deveres são constantemente cobradas, pelo marido, pela família e pela própria sociedade. 

Certamente a omissão feminina decorre da ausência de uma cultura de gênero, que precisa ser ensinada nas escolas. Assim, é assustadora a crescente onda que tenta manter este quadro ainda tão machista e conservador, sob a equivocada expressão “ideologia de gênero”. 

Por tudo isso é indispensável a participação feminina tanto nas eleições majoritárias como nas proporcionais. Como a sociedade é plural, é preciso que o poder político retrate esta realidade. 

A presença feminina é indispensável até para que ocorra o aprimoramento da legislação. Basta lembrar o Código Penal data do ano de 1940. Às claras que retratava a sociedade da primeira metade do século passado. Por isso precisa ser sempre atualizado. Principalmente quanto aos crimes que dizem com a dignidade e a liberdade sexual das meninas e das mulheres. Elas sempre foram – e ainda são – as maiores vítimas entre todos os crimes que são cometidos no país. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada dia, 12 mulheres são mortas e 180 são estupradas. A maioria das vítimas são meninas de até 13 anos de idade. A cada hora são estupradas quatro meninas. E a cada dois minutos uma mulher é vítima de violência doméstica. 

Os números são estarrecedores! 

Não há dia que a imprensa não noticie o que fazem os homens pelo simples fato de não aceitarem a frase: não te quero mais! 

As causas parecem que são muitas, mas, de fato, é uma só. 

A ideologia patriarcal ainda subsiste. Uma cultura machista que reina em uma sociedade ainda conservadora, em que o homem acredita ser superior à mulher; que ela lhe deve obediência. O homem se tem como proprietário do corpo e da vontade da mulher. Tem poder sobre ela, o que a transforma em um objeto de sua propriedade. Sendo dono da mulher, não aceita perde-la. Não admite ser abandonado. Essa errônea concepção de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e força física sobre a fêmea. 

Simples assim. 

Claro que a solução está na educação. 

Mas o assustador é que, em nome da conservação da família, está se impedindo que nas escolas se discutam as questões de gênero. 

Propositadamente políticos baralham sexualidade com incentivo à homossexualidade, com o único propósito de impedir que as mulheres ocupem o lugar pelo qual vêm lutando há décadas. 

E, enquanto se tenta convencer a sociedade de que não existe igualdade de gênero, vai continuar esta absurda carnificina. 

As mulheres estão virando mártires do preconceito que vem se instalando no poder. 

Claro que a criação de novos tipos penais e o aumento das penas, não faz com que os crimes deixem de acontecer. No entanto, dispõe de caráter pedagógico e desestimula sua prática. 

Historicamente, era rara a condenação nos “crimes contra os costumes”. Assim chamados os crimes sexuais. O desencadeamento da ação penal dependia de representação da vítima, a evidenciar que não existia qualquer interesse do Estado em coibi-los. Por serem crimes que, de um modo geral, acontecem em ambientes privados, a prova era quase impossível. A palavra da mulher, sempre foi desacreditada. Na maior parte das vezes, restava ela responsabilizada pelo acontecido. E o réu, absolvido. 

Não era só. Havendo um vínculo de conjugalidade entre a vítima e seu assassino, a alegação da infidelidade da mulher, levava à absolvição do marido. Quer matasse ele a esposa ou o seu amante, era reconhecido que havia agido em “legítima defesa da honra”, excludente da punibilidade que sequer existia na lei. 

Foram muitas as iniciativas para coibir a escalada de violência de que as mulheres são vítimas, pelo simples fato de pertencerem ao sexo feminino. Apesar dos muitos avanços, ainda se vive em uma sociedade conservadora, machista, que confere ao homem o direito ao livre exercício da sexualidade. Com quem quiser, a qualquer hora, seja no lugar que for. Tanto antes como durante o casamento. A virilidade masculina é medida pela coragem de impor o sua vontade, sem qualquer preocupação com o querer da mulher ou a conveniência da ocasião. 

A revolução industrial, a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias acabaram impondo a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao integrar-se no mercado de trabalho, saiu para fora do lar, cobrando do varão a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro preestabelecido. 

No entanto, no mercado de trabalho –– sua liberdade sexual continuou desrespeitada. Passou a ser perseguida pelos chefes e colegas, os quais nutriam, também com relação a elas, igual sentimento de propriedade do seu corpo e do seu desejo. 

O significativo avanço das mulheres em várias áreas e setores do mundo público, não consegue encobrir a mais cruel sequela da discriminação: a violência doméstica, que tem como justificativa a cobrança de possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. 

O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa autoestima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Foi neste contexto que surgiu A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) foi um grande marco, ao escancarar uma realidade que nunca ninguém quis ver: a prática contumaz de delitos domésticos contra as mulheres. 

A violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro são identificadas ações que configuram violência doméstica ou familiar contra a mulher: qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica: no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. 

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas na lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto. 

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas. Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso tipificam delitos que desencadeiam uma ação penal. 

De qualquer modo, mesmo não havendo crime, é necessário garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deve proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e, quando a vítima solicitar alguma medida protetiva, remeter a juízo o expediente. 

Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da polícia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime. 

Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática de algum delito, o que não inibe a concessão das medidas protetivas, tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz. 

Assim, sabedora a mulher da possibilidade de ser imposta a seu cônjuge ou companheiro a obrigação de submeter-se a acompanhamento psicológico ou de participar de programa terapêutico, certamente terá coragem de denunciá-lo. A previsão de uma forma qualificado do delito de homicídio, com o nome de feminicídio (CP, art. 121, § 2º, VI), escancarou uma realidade ainda chocante. O perigo a que estão expostas as mulheres pelo simples fato de desejarem sair de um relacionamento. Pelo jeito, a jura feita no altar: “até que a morte os separe”, é levada à risca pelo homem. Afinal, ele considera que a mulher é uma propriedade sua. Não tem direito de sair do relacionamento. 

Outros avanços foram significativos, ainda que não suficientes. O assédio sexual foi reconhecido como crime (CP, art. 216-A). Condutas que afrontam a dignidade e a liberdade sexual também. O estupro teve seu conceito alargado, merecendo regulamentação destacada os crimes sexuais contra vulneráveis (CP, arts. 217-A a 218-C). Em todos, o desencadeamento da ação penal deixou de depender da iniciativa da vítima. Como a ação é pública incondicionada o Ministério Público tem legitimidade para o oferecimento da denúncia (CP, art. 225). 

Também são tipificados como crime a importunação sexual (CP, art. 215-A) e o induzimento, instigação, incitação ou apologia a crime contra a dignidade sexual (CP, art. 128-D e par. único). Estão previstos os crimes de estupro coletivo e corretivo, com a pena aumentada (CP, art. 126, IV, a e b). E resta esclarecido que ocorre estupro de vulnerável, mesmo quando há consentimento da vítima ou tenham ocorrido relações sexuais anteriores (CP, art. 127-A). 

Do mesmo modo, mereceu inclusão no Código Penal a divulgação de cena de estupro, de estupro de vulnerável, de sexo ou pornografia (CP, art. 128-C). Existindo relação íntima de afeto, ou quando o crime é praticado com fim de vingança ou humilhação, a pena é aumentada (CP, art. 128-C, § 1º). 

Todos estes crimes, quando perpetrados à noite, em lugar ermo ou em local público, aberto ao público, em grandes aglomerações ou em transportes públicos, têm a pena aumentada em um terço (CP, art. 226, I). A pena é elevada à metade quando o agente tem vínculo de conjugal idade ou parentesco com a vítima, é seu empregador ou tem autoridade sobre ela (CP, art. 226, II). 

Bem, o legislador fez sua parte. 

As autoridades judiciais e policiais fazem o que podem. Tanto o Ministério Público, como a Defensoria e os advogados. Os meios de comunicação são grandes aliados nesta verdadeira saga na tentativa se reverter os números horríveis que envergonham o país. 

No entanto, como a violência tem origem no âmbito familiar, cabe à escola ensinar que as diferenças da ordem da sexualidade não autorizam posturas de gênero hierarquizadas. O sentimento de superioridade e dominação do homem não pode gerar a crença de que ele é dono da mulher, dispondo de um poder correcional sobre ela. 

Esta é a única forma de se promover a indispensável e tão necessária mudança de paradigmas, para se poder proclamar que se vive em um Estado Democrático e de Direito, onde homens e mulheres são iguais. 

Afinal, é chegada a hora de aprendermos a ter por vontade própria!

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Diretora do IARGS representa instituto em evento sobre litigância climática

A diretora do Departamento de Direito Ambiental do IARGS, Dra Alessandra Lehmen, representará o instituto amanhã, dia 16/09, no evento on-line “Litigância Climática no STF: o que esperar da audiência pública da ADPF 708 (Fundo Clima)?” A promoção é do Instituto Clima e Sociedade (ICS) junto com a Rede Laclima. A transmissão será ao vivo no Canal do Youtube do ICS, das 9h30 às 11h.

Da exclusão judicial do sócio majoritário por iniciativa dos minoritários

 



Artigo do Dr Geovane Alves, advogado e Diretor do Departamento de Direito Aeronáutico do IARGS

O ordenamento jurídico brasileiro estabelece que a aquisição de personalidade jurídica pelas sociedades se dá com a inscrição de seu ato constitutivo no respectivo registro. Contudo, tal momento apenas externaliza o ânimo preexistente dos sócios estarem juntos para a constituição de uma sociedade. Ou seja, diferentemente de outras relações contratuais em que as partes assumem posições opostas, a característica fundamental da relação societária é o objetivo em comum almejado pelos sócios, qual seja, a affectio societatis. 

Na doutrina de João Eunápio Borges, ressalta-se que a affectio societatis tem conteúdo essencialmente de natureza econômica. Funda-se, portanto, na intenção dos sócios, no momento de constituição da sociedade, de cooperar ativamente para a realização da obra ou empresa comum. 

Desta forma, a affectio societatis constitui elemento subjetivo característico e impulsionador da sociedade, representando a convergência de interesses dos sócios para alcançar o objeto definido no contrato social. 

Em sociedades empresárias como as limitadas, em que a afeição pessoal entre os sócios se torna vínculo fundamental para a formação da sociedade, o indivíduo e suas características pessoais predominam sobre o capital que ele possa vir a agregar à sociedade. 

Ocorre que a manutenção da sociedade empresária está amparada, igualmente, na necessidade de alcance de sua função social; ou seja, à conquista de um objetivo útil, não somente para os sujeitos diretamente envolvidos, mas também para a sociedade. 

O Direito Societário, portanto, precisa oferecer instrumentos e formas de se permitir a manutenção da sociedade – e da empresa –mesmo em situações nas quais os seus sócios não mantenham um bom relacionamento entre si. 

Neste contexto, a dissolução parcial e a exclusão de sócio são fenômenos diversos. Na primeira, pretende o sócio dissidente a sua retirada da sociedade, bastando-lhe a comprovação da quebra da affectio societatis; na segunda, a pretensão é de excluir outros sócios, em decorrência de grave inadimplemento dos deveres essenciais, colocando em risco a continuidade da própria atividade social. 

Em outras palavras, a exclusão é medida extrema que visa à eficiência da atividade empresarial, para o que se torna necessário expurgar o sócio que gera prejuízo ou a possibilidade de prejuízo grave ao exercício da empresa. Nesse caso, é imprescindível a comprovação do justo motivo. 

Entretanto, o problema se dá quando a efetiva quebra da affectio societatis é consequência da prática de falta grave pelo sócio majoritário. No caso, o Código Civil de 2002 estabelece que o sócio pode ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente (artigo1.030). 

Assim, na exclusão judicial de sócio em virtude da prática de falta grave não incide a condicionante prevista no artigo 1.085 do Código Civil, somente aplicável na hipótese de exclusão extrajudicial de sócio por deliberação da maioria representativa de mais da metade do capital social, mediante alteração do contrato social. 

Essa, a propósito, foi a compreensão adotada no julgamento do REsp 1653421/MG, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça: 


RECURSO ESPECIAL. DIREITO SOCIETÁRIO. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. SÓCIO MAJORITÁRIO. PRÁTICA DE FALTA GRAVE. EXCLUSÃO. ART. 1.030 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. SÓCIOS MINORITÁRIOS. INICIATIVA. POSSIBILIDADE. 

1. Controvérsia limitada a definir se é possível a exclusão judicial de sócio majoritário de sociedade limitada por falta grave no cumprimento de suas obrigações, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios. 

2. Nos termos do Enunciado nº 216/CJF, aprovado na III Jornada de Direito Civil, o quórum de deliberação previsto no art. 1.030 do Código Civil de 2002 é de maioria absoluta do capital representado pelas quotas dos demais sócios. 

3. Na apuração da maioria absoluta do capital social para fins de exclusão judicial de sócio de sociedade limitada, consideram-se apenas as quotas dos demais sócios, excluídas aquelas pertencentes ao sócio que se pretende excluir, não incidindo a condicionante prevista no art. 1.085 do Código Civil de 2002, somente aplicável na hipótese de exclusão extrajudicial de sócio por deliberação da maioria representativa de mais da metade do capital social, mediante alteração do contrato social. 

4. Recurso especial não provido. 

(REsp 1653421/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2017, DJe 13/11/2017) 


Desta forma, o artigo 1.030 do Código Civil, ao dispor que a exclusão judicial é de ‘‘iniciativa da maioria dos demais sócios’’, de modo claro e expresso, determina que, para a decisão sobre a promoção da ação de exclusão judicial, não é computada a participação social do excluendo. 

Logo, torna-se possível a exclusão de qualquer sócio, independentemente de sua participação no capital social, o que significa dizer que o majoritário pode ser excluído, judicialmente, pela minoria.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Incidência de ITBI X incorporação de bens móveis

 

Artigo da Dra Alice Grecchi, vice-presidente e Diretora do Departamento de Direito Tributário do IARGS

Tema: Incidência de ITBI X incorporação de bens móveis 

Após decisão DO STF NO RE 796.376/SC

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 796.376/SC (tema 376 da repercussão geral), decidiu, por maioria de votos (7 a 4), que, na transmissão de imóveis, incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, na integralização de seu capital social, há incidência de ITBI apenas na parte em que o valor excedente destes bens se destina à formação de reserva de capital. Em outras palavras, deixou assentado que a imunidade ao ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens imóveis que, por exceder ao capital social a integralizar, vai para a reserva de capital. 

Anote-se que, em seu voto vencido, o Ministro Relator Marco Aurélio Mello manteve a imunidade integral ao ITBI, propondo a seguinte tese: “Revela-se imune, sob o ângulo tributário, a incorporação de imóvel ao patrimônio de pessoa jurídica, ainda que o valor total exceda o limite do capital social a ser integralizado”. 

O Ministro Alexandre de Moraes divergiu, no que foi acompanhado pela maioria dos seus pares, aduzindo que “o argumento no sentido de que incide a imunidade em relação ao ITBI, sobre o valor dos bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital, excedente ao valor do capital subscrito, não encontra amparo no inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88, pois a ressalva sequer tem relação com a hipótese de integralização de capital”. 

Afirmou, ainda, que “[r]evelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo - como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital”. Entendeu, pois, que o ITBI incide sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o do capital subscrito a ser integralizado. Dito de outro modo, decidiu que a imunidade se restringe ao valor destinado à integralização do capital social, o que ocorre quando os sócios da pessoa jurídica quitam, com bens imóveis, as quotas por eles subscritas. 

Em suma, o voto condutor procedeu a uma redução semântica do texto constitucional, limitando a imunidade em tela aos imóveis destinados à imediata integralização do capital subscrito. Assim dispôs, nada obstante a Constituição Federal e o próprio Código Tributário Nacional desonerarem de ITBI a incorporação de bens imóveis ao patrimônio da empresa, que, como se sabe, compreende as reservas de capital. 

A decisão do STF, no entanto, absolutamente não autoriza os Municípios a avaliarem, de acordo com as condições usuais de mercado, o bem imóvel que, pelo seu valor nominal, integralizou o capital social da pessoa jurídica, de modo a fazer incidir o ITBI, sobre o valor excedente. 

Então, vejamos. 

O caso julgado tratou da diferença entre o valor atribuído aos imóveis pelo contribuinte – que tanto podia ser o despendido na aquisição (constante da declaração do IR), como o atualizado de acordo com o mercado – e o das cotas ou ações com eles integralizadas. Ao contrário do que pretendem alguns, não cuidou da diferença entre o valor cadastral (valor venal, para fins tributários, definido pelo Município) e o valor histórico dos imóveis, quando o contribuinte adota este último e com ele integraliza cotas ou ações de idêntica expressão nominal. 

Cuida-se de duas situações distintas e, nessa medida, inconfundíveis. A primeira: do valor do imóvel versus o valor das cotas/ações. A outra: do valor cadastral do imóvel (o valor a ele atribuído pela municipalidade) versus seu valor histórico. A pretensão ao ITBI, neste último caso, não foi discutida no acórdão, que sempre se refere ao excesso de valor dos imóveis sobre o do capital a ser integralizado, com a consequente formação de reserva, na contabilidade da empresa destinatária. 

Cabe lembrar, a propósito, que o art, 23, da Lei 9.249/95, dispõe: "as pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado" (caput). E, em seu § 1º, prossegue estatuindo: "se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos". Ressalva, no entanto, agora em seu § 2º: "se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital". 

Pois bem. Alguns Municípios, numa interpretação “muito a propósito” do que foi decidido pelo STF, estão entendendo que, com base no precitado § 1º, o valor que deixou de ser tributado pela União, como ganho de capital, pode ser alcançado pelo ITBI. Ora, isso não foi sequer objeto do RE 796.376/SC, que girou apenas em torno da efetiva diferença entre o valor dos imóveis e o das cotas ou ações integralizadas. 

Portanto, a decisão do STF não autoriza os Municípios a se utilizarem de um benefício concedido pela União, qual seja, o de incorporar os bens pelo valor histórico, para dele extraírem uma vantagem indevida. Com efeito, caso a integralização ocorresse pelo valor de mercado, tudo o que se teria seria a incidência imediata do IR sobre o ganho de capital, sem o nascimento de qualquer dever de recolher o ITBI. Não vemos como aceitar que a integralização por um valor menor – contra cotas ou ações com um valor de face também menor – deva atrair a incidência do imposto municipal. 

Em suma, a transferência dos imóveis e a emissão das cotas ou ações se fazem pelo valor histórico, unicamente por economia de IR, com pleno conhecimento e mesmo o estímulo da União. Inexiste, na hipótese, qualquer perda de ITBI, a justificar uma reação dos Fiscos municipais, mas, apenas, o propósito oportunista de se apropriarem de um incentivo concedido por terceiro (a União) ao seu contribuinte de IR. 

Em conclusão, o recente acórdão do STF parece-nos, com o devido respeito, merecedor de críticas, mas nem de longe referenda a exigência de ITBI sobre a diferença entre o preço de mercado (ou valor cadastral) do imóvel e seu custo histórico, quando este tenha sido adotado pelo contribuinte para integralizar cotas ou ações de igual valor de face.

domingo, 6 de setembro de 2020

IARGS apoia curso sobre Aspectos Tributários da Recuperação Tributária e Falência

Com o apoio institucional do IARGS, a Fundação Escola Superior de Direito Tributário, em parceria com o Instituto Brasileiro de Insolvência, promoverá o curso “Aspectos Tributários da Recuperação Tributária e Falência”, que une o Direito Tributário e a Insolvência. O curso será realizado de 11 de setembro a 3 de outubro, totalizando 24 horas/aula, em encontro virtual via Zoom. A coordenação é do advogado Luiz Eduardo Trindade Leite, Diretor adjunto do Departamento de Estudos de Recuperação Judicial do IARGS. O corpo docente é formado por advogados, juízes, árbitros, procuradores e promotores especialistas no tema. 

Inscrições: www.fesdt.com.br


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

IARGS apoia VII Direito e Cultura: tradição constitucional brasileira

O VII Direito e Cultura, encontro anual de professores organizado por universidades e instituições gaúchas, cujo principal escopo é a "Tradição Constitucional Brasileira", será realizado neste ano nos dias 8 a 10 de setembro, e conta com o apoio do IARGS. Devido ao afastamento social, todo o curso será transmitido de forma gratuita, via on-line, pelo Canal do Youtube, durante à noite. 

Neste ano, a proposta é debater a história do Constitucionalismo brasileiro, as ideias presentes e a defesa da Constituição. A presidente do IARGS, Sulamita Santos Cabral, participará como presidente da Mesa no último dia (10/09). 

Pesquisadores, estudantes e juristas de qualquer parte são bem-vindos a olhar as apresentações e debater com os palestrantes. A coordenação do evento informa que as inscrições não dependem de vínculos institucionais e podem ser feitas preenchendo o formulário de presença de cada dia - que ficará disponibilizado abaixo do vídeo de transmissão. 

Certificados: https://www.furg.br/consultar-certificados.

O link de redirecionamento para ingressar na Sala de Eventos será, durante todos os dias, o seguinte: https://rebrand.ly/DireitoeCultura

Quando: 8 a 10 de setembro, 19h

Onde: https://rebrand.ly/DireitoeCultura

      Inscrição: no local, durante o evento



terça-feira, 1 de setembro de 2020

O Seguro Rural

Artigo do advogado Geraldo Gama, diretor do Departamento de Seguros e Previdência do IARGS

Tema: Anotações sobre o Seguro e a pandemia

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                                          “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento
       do prêmio, a garantir o interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa 
ou coisa, contra riscos predeterminados.” – Art. 757 do Código Civil.

A questão interessa sobremaneira ao setor primário brasileiro porque envolve toda a cadeia produtiva da economia agropecuária, de forma direta (interesse do produtor) ou indireta (interesse dos financiadores, etc.). Trata-se de um contrato privado de tal importância, quanto à segurança alimentar, que o valor do prêmio é parcialmente subvencionado desde 2006 pelo Governo Federal.
Mesmo assim, verifica-se um acanhamento do produtor na utilização desta garantia eis que apenas 10% a 12% contratam seguro rural, diversamente, por exemplo, com o que acontece nos Estados Unidos, ostentam índices que alcançam, 90% e com abrangência maior de cobertura. Refira-se que na Argentina, outro grande produtor mundial de grãos, os percentuais são inferiores aos do Brasil.
É um seguro que pode ser contratado, através de corretor especializado, por pessoas físicas ou jurídicas e as políticas de incentivo garantem subvenção por volta de 35% do valor do prêmio (valor repassado diretamente ao segurador que se encarrega de encaminhar os pedidos de subvenção junto ao Departamento de Gestão de Riscos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (DEGER/Mapa). 
Sem a subvenção seria improvável ao produtor contratar esta espécie de seguro, frustrando a desejada massificação das apólices e consequente queda nos valores dos prêmios, prejudicando os benefícios colaterais de estabilidade nos preços e na produção o que estimularia um cenário propício a maiores investimentos tecnológicos
Foram instituídas também subvenções por governos estaduais e municipais, em seus respectivos âmbitos territoriais.
Competindo, de certa forma, com o seguro rural está o Proagro - programa do governo federal, que garante financiamentos rurais de custeio agrícola quando a lavoura sofra redução de receita em razão de eventos climáticos ou pragas e doenças sem controle.
O seguro ainda é a melhor ferramenta que o produtor dispõe para assegurar os seus investimentos diretos na lavoura (ou na pecuária), garantindo tranquilidade nas sucessivas safras contra, principalmente as adversidades climáticas, assegurando o adimplemento dos compromissos financeiros assumidos com os financiamentos sucessivos.
O agronegócio movimentou cerca de um e meio trilhão de reais no ano de 2019, correspondendo a 21,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, sendo de destacar que a agricultura familiar responde por 80% da produção dos alimentos e dos empregos no meio rural.
O seguro agrícola garante o produtor contra o risco do clima (seca, inundação, geada, granizo, etc.) e não germinação, além de outras, como estabelecido no contrato. A Superintendência de Seguros Privados – SUSEP – regula profusamente esta matéria, proporcionando três modalidades ao seguro agrícola: Seguro produtividade, seguro de riscos nomeados e seguro de custeio.
Interessante é a modalidade do seguro de preço (receita ou renda), quando mesmo uma produção menor pode compensar com o preço melhor oferecido pelo mercado e vice-versa.
Outra questão importante a ressaltar é o resguardo do princípio da boa-fé que deve nortear o relacionamento das partes em todo e qualquer tipo de contrato, mas com maior ênfase no contrato de seguro, ainda mais o rural. O segurado deve fornecer todas as informações que cercam o risco a ser assumido pelo segurador, sem omissões ou reservas, inclusive alertando qualquer agravamento no risco assumido, pena de perder o direito à indenização contratada.
Este seguro é muito abrangente porque protege o patrimônio do segurado/produtor e até mesmo a sua vida. É um seguro diferenciado que objetiva assegurar a tranquilidade a tantos quantos o negócio interessa, desde a própria família do produtor até seus financiadores, seja na produção, seja na comercialização.

Enfim, o seguro rural cobre basicamente a vida da planta desde o plantio até a colheita e comercialização, desde que os bens segurados não constituam garantia nas operações bancárias em operações de crédito rural. Nesta hipótese, o contrato de seguro será outro, denominado de seguro de penhor rural que pode ser conhecido no site www.susep/gov.br/setores-susep/cgpro/coseb/seguro-rural. É um seguro que garante o pagamento do crédito rural.