Artigo da Desembargadora aposentada do TJ/RS, Dra Maria Berenice Dias, advogada especializada em Direito Homoafetivo, Direito das Famílias e Sucessões
Onde estão as mulheres? Alguém consegue responder a esta pergunta? Até porque as mulheres nunca ocuparam espaço nenhum. Sempre foram invisíveis. Jamais fizeram parte da história ou da vida pública.
Não lhes era permitido ter vontade própria. Não tinham sequer o direito de sonhar. Foram adestradas para o casamento. Era somente o que podiam almejar.
A esposa devia obediência ao marido. Sua única responsabilidade era cuidar da casa e criar os filhos. E precisava ser bela, recatada e do lar.
Fizeram a mulher acreditar que sua honra estava em manter as pernas fechadas. A virgindade tinha valor. Tudo isso para o homem ter certeza de ser ele o pai dos filhos da sua mulher. Aliás, a presunção da paternidade ainda está prevista no Código Civil. Pelo jeito, o que a lei pressupõe é a fidelidade da mulher.
O espaço público sempre foi masculino. A mulher restou confinada no limite doméstico. Tal enseja a formação de dois mundos: um de dominação e outro de obediência. A essa distinção estão associados papéis ideais: o homem de provedor da família e a mulher o cuidado do lar e dos filhos. A sociedade outorga ao sexo masculino um papel paternalista, exigindo do sexo feminino uma postura de submissão. O poder feminino era restrito ao âmbito doméstico. Ainda hoje a esposa é considerada a rainha do lar! Um reinado sem coroa, sem manto, sem cetro. E quem seria o rei? O homem detinha tinha a autoridade familiar e se arvorava o direito de punir, tanto os filhos como a mulher.
Isso mudou? Quando? E em que medida?
Apesar do significativo aumento de sua participação na sociedade, as mulheres ainda ganham menos e não ocupam as instâncias de poder em número igualitário.
Avanços vêm acontecendo em muitas frentes, menos no âmbito político. Mesmo com reserva de cotas e a garantia de acesso às verbas do fundo partidário em percentual de 30%, rarefeita é sua presença entre os eleitos. O que evidencia que são inseridas como candidatas apenas para garantir o acesso de mais homens na eleição.
Aliás, se somos mais da metade da população e mais da metade do eleitorado, nada justifica termos assegurado somente um terço das candidaturas aos parlamentos.
Claro que a motivação – ou a falta dela – diz com a posição da mulher no mundo privado. Ela ainda está submetida à crença de que sua função primordial é ser mãe e a responsável pela administração da casa. Como se libertar destes encargos sem o sentimento de culpa? Até porque, de tais deveres são constantemente cobradas, pelo marido, pela família e pela própria sociedade.
Certamente a omissão feminina decorre da ausência de uma cultura de gênero, que precisa ser ensinada nas escolas. Assim, é assustadora a crescente onda que tenta manter este quadro ainda tão machista e conservador, sob a equivocada expressão “ideologia de gênero”.
Por tudo isso é indispensável a participação feminina tanto nas eleições majoritárias como nas proporcionais. Como a sociedade é plural, é preciso que o poder político retrate esta realidade.
A presença feminina é indispensável até para que ocorra o aprimoramento da legislação. Basta lembrar o Código Penal data do ano de 1940. Às claras que retratava a sociedade da primeira metade do século passado. Por isso precisa ser sempre atualizado. Principalmente quanto aos crimes que dizem com a dignidade e a liberdade sexual das meninas e das mulheres. Elas sempre foram – e ainda são – as maiores vítimas entre todos os crimes que são cometidos no país. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada dia, 12 mulheres são mortas e 180 são estupradas. A maioria das vítimas são meninas de até 13 anos de idade. A cada hora são estupradas quatro meninas. E a cada dois minutos uma mulher é vítima de violência doméstica.
Os números são estarrecedores!
Não há dia que a imprensa não noticie o que fazem os homens pelo simples fato de não aceitarem a frase: não te quero mais!
As causas parecem que são muitas, mas, de fato, é uma só.
A ideologia patriarcal ainda subsiste. Uma cultura machista que reina em uma sociedade ainda conservadora, em que o homem acredita ser superior à mulher; que ela lhe deve obediência. O homem se tem como proprietário do corpo e da vontade da mulher. Tem poder sobre ela, o que a transforma em um objeto de sua propriedade. Sendo dono da mulher, não aceita perde-la. Não admite ser abandonado. Essa errônea concepção de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e força física sobre a fêmea.
Simples assim.
Claro que a solução está na educação.
Mas o assustador é que, em nome da conservação da família, está se impedindo que nas escolas se discutam as questões de gênero.
Propositadamente políticos baralham sexualidade com incentivo à homossexualidade, com o único propósito de impedir que as mulheres ocupem o lugar pelo qual vêm lutando há décadas.
E, enquanto se tenta convencer a sociedade de que não existe igualdade de gênero, vai continuar esta absurda carnificina.
As mulheres estão virando mártires do preconceito que vem se instalando no poder.
Claro que a criação de novos tipos penais e o aumento das penas, não faz com que os crimes deixem de acontecer. No entanto, dispõe de caráter pedagógico e desestimula sua prática.
Historicamente, era rara a condenação nos “crimes contra os costumes”. Assim chamados os crimes sexuais. O desencadeamento da ação penal dependia de representação da vítima, a evidenciar que não existia qualquer interesse do Estado em coibi-los. Por serem crimes que, de um modo geral, acontecem em ambientes privados, a prova era quase impossível. A palavra da mulher, sempre foi desacreditada. Na maior parte das vezes, restava ela responsabilizada pelo acontecido. E o réu, absolvido.
Não era só. Havendo um vínculo de conjugalidade entre a vítima e seu assassino, a alegação da infidelidade da mulher, levava à absolvição do marido. Quer matasse ele a esposa ou o seu amante, era reconhecido que havia agido em “legítima defesa da honra”, excludente da punibilidade que sequer existia na lei.
Foram muitas as iniciativas para coibir a escalada de violência de que as mulheres são vítimas, pelo simples fato de pertencerem ao sexo feminino. Apesar dos muitos avanços, ainda se vive em uma sociedade conservadora, machista, que confere ao homem o direito ao livre exercício da sexualidade. Com quem quiser, a qualquer hora, seja no lugar que for. Tanto antes como durante o casamento. A virilidade masculina é medida pela coragem de impor o sua vontade, sem qualquer preocupação com o querer da mulher ou a conveniência da ocasião.
A revolução industrial, a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias acabaram impondo a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao integrar-se no mercado de trabalho, saiu para fora do lar, cobrando do varão a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro preestabelecido.
No entanto, no mercado de trabalho –– sua liberdade sexual continuou desrespeitada. Passou a ser perseguida pelos chefes e colegas, os quais nutriam, também com relação a elas, igual sentimento de propriedade do seu corpo e do seu desejo.
O significativo avanço das mulheres em várias áreas e setores do mundo público, não consegue encobrir a mais cruel sequela da discriminação: a violência doméstica, que tem como justificativa a cobrança de possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero.
O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa autoestima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Foi neste contexto que surgiu A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) foi um grande marco, ao escancarar uma realidade que nunca ninguém quis ver: a prática contumaz de delitos domésticos contra as mulheres.
A violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro são identificadas ações que configuram violência doméstica ou familiar contra a mulher: qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica: no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas na lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.
Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas. Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso tipificam delitos que desencadeiam uma ação penal.
De qualquer modo, mesmo não havendo crime, é necessário garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deve proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e, quando a vítima solicitar alguma medida protetiva, remeter a juízo o expediente.
Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da polícia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.
Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática de algum delito, o que não inibe a concessão das medidas protetivas, tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.
Assim, sabedora a mulher da possibilidade de ser imposta a seu cônjuge ou companheiro a obrigação de submeter-se a acompanhamento psicológico ou de participar de programa terapêutico, certamente terá coragem de denunciá-lo. A previsão de uma forma qualificado do delito de homicídio, com o nome de feminicídio (CP, art. 121, § 2º, VI), escancarou uma realidade ainda chocante. O perigo a que estão expostas as mulheres pelo simples fato de desejarem sair de um relacionamento. Pelo jeito, a jura feita no altar: “até que a morte os separe”, é levada à risca pelo homem. Afinal, ele considera que a mulher é uma propriedade sua. Não tem direito de sair do relacionamento.
Outros avanços foram significativos, ainda que não suficientes. O assédio sexual foi reconhecido como crime (CP, art. 216-A). Condutas que afrontam a dignidade e a liberdade sexual também. O estupro teve seu conceito alargado, merecendo regulamentação destacada os crimes sexuais contra vulneráveis (CP, arts. 217-A a 218-C). Em todos, o desencadeamento da ação penal deixou de depender da iniciativa da vítima. Como a ação é pública incondicionada o Ministério Público tem legitimidade para o oferecimento da denúncia (CP, art. 225).
Também são tipificados como crime a importunação sexual (CP, art. 215-A) e o induzimento, instigação, incitação ou apologia a crime contra a dignidade sexual (CP, art. 128-D e par. único). Estão previstos os crimes de estupro coletivo e corretivo, com a pena aumentada (CP, art. 126, IV, a e b). E resta esclarecido que ocorre estupro de vulnerável, mesmo quando há consentimento da vítima ou tenham ocorrido relações sexuais anteriores (CP, art. 127-A).
Do mesmo modo, mereceu inclusão no Código Penal a divulgação de cena de estupro, de estupro de vulnerável, de sexo ou pornografia (CP, art. 128-C). Existindo relação íntima de afeto, ou quando o crime é praticado com fim de vingança ou humilhação, a pena é aumentada (CP, art. 128-C, § 1º).
Todos estes crimes, quando perpetrados à noite, em lugar ermo ou em local público, aberto ao público, em grandes aglomerações ou em transportes públicos, têm a pena aumentada em um terço (CP, art. 226, I). A pena é elevada à metade quando o agente tem vínculo de conjugal idade ou parentesco com a vítima, é seu empregador ou tem autoridade sobre ela (CP, art. 226, II).
Bem, o legislador fez sua parte.
As autoridades judiciais e policiais fazem o que podem. Tanto o Ministério Público, como a Defensoria e os advogados. Os meios de comunicação são grandes aliados nesta verdadeira saga na tentativa se reverter os números horríveis que envergonham o país.
No entanto, como a violência tem origem no âmbito familiar, cabe à escola ensinar que as diferenças da ordem da sexualidade não autorizam posturas de gênero hierarquizadas. O sentimento de superioridade e dominação do homem não pode gerar a crença de que ele é dono da mulher, dispondo de um poder correcional sobre ela.
Esta é a única forma de se promover a indispensável e tão necessária mudança de paradigmas, para se poder proclamar que se vive em um Estado Democrático e de Direito, onde homens e mulheres são iguais.
Afinal, é chegada a hora de aprendermos a ter por vontade própria!