Artigo da Dra Melissa Telles, associada do IARGS e presidente do Instituto Proteger
Com a regra do isolamento social, procedimento necessário e adotado por quase todos os países do mundo para conter a disseminação da Covid-19 (Coronavirus), parece que a casa foi eleita o local de maior proteção. No entanto, infelizmente, este nem sempre é o local mais seguro, principalmente para àqueles em situação de vulnerabilidade.
Isso porque é dentro do lar, na família, onde acontecem inúmeras violências e maus-tratos, e essa infeliz situação já vem contada e recontada pela história da humanidade - “Ainda que a violência com visibilidade seja a que ocorre fora de casa, o lar continua sendo a maior fonte de violência”[1]
Nesse aspecto, mostra-se relevante trazer as concepção da violência doméstica contra a criança e o adolescente, nas palavras de Guerra e Azevedo.
Representa todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual, e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes tem de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar e desenvolvimento[2]
Marianne Hester, socióloga da Universidade de Bristol, que estuda relacionamentos abusivos, alerta que “A violência doméstica aumenta sempre que as famílias passam mais tempo juntas, como as férias de Natal e verão”[3].
A preocupação com o aumento da violência intrafamiliar é universal. Na China, relata-se que a violência doméstica triplicou durante o mandato de abrigo. Além disso, a França indicou um aumento de 30% nos relatórios de violência doméstica e, a Itália, também indicou que os relatórios de violência doméstica aumentaram durante o período de isolamento e distanciamento social.
Na Espanha, de igual modo, surgiram relatos de um terrível homicídio relacionado à violência doméstica - uma tendência que, infelizmente, continuará em todo o mundo, à medida que o estresse continue a construir e a abrigar medidas locais que se estendam para o futuro.
A crescente tendência global, de aumento de casos de violência doméstica, provavelmente se manterá durante toda a pandemia e pode representar apenas uma "ponta do iceberg", pois muitas vítimas ainda se veem presas ao agressor e incapazes de denunciar o abuso.
Nos Estados Unidos, agências de todo o país também estão relatando um aumento na violência doméstica. Além do risco de dano físico, as vítimas também correm grande risco de dano emocional e de abuso psicológico.
Nesse aspecto, surgiram relatos, nos Estado Unidos, de autores de violência doméstica, utilizando a Covid-19 como arma contra as suas vítimas, proibindo a lavagem das mãos na tentativa de aumentar o medo da vítima de contrair o vírus e ameaçando proibir o tratamento médico se a vítima contrair a doença[4].
No Brasil, a agressão contra a mulher aumentou em 44,9% só em São Paulo, de acordo com relatório divulgado no primeiro período de isolamento social, no dia 20 de abril, pelo Fórum de Segurança Pública (FBSP). Também houve um acréscimo de feminicídios no estado, de 13 para 19 casos – 46,2%. O mesmo aumento também aconteceu nos casos de exploração sexual infantil, no mesmo período, com um crescimento de 50%, apesar das subnotificações e silenciamento da vítima, já que o principal espaço de denúncia, a escola, está fechada. [5]
Diante disso, é preciso se fazer um alerta: o modelo de convivência instaurado e intensificado, por conta da COVD 19, é campo fértil para o alargamento da violação de direitos e, consequentemente, de opressão aos mais vulneráveis. Assim, fica desvelada a necessidade de um maior cuidado na Proteção da Família, por parte da sociedade e do Estado.
Salientamos, assim, a importância da atuação da Rede de Proteção, principalmente neste momento, devendo, inclusive, atuar de forma preventiva, por meio dos mecanismos virtuais disponibilizados, como canais mais amplos de comunicação e denúncias.
A recomendação é que as pessoas próximas, como vizinhos, ao perceberem que crianças e/ou adolescentes estão sendo vítimas de violência, denunciem por meio do número 100, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), do Governo Federal, cuja finalidade é receber denúncias relativas à violência sexual contra crianças e adolescentes. Somado a isso, é possível ligar para uma Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) do seu município ou estado. De modo mais direto, acionar o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (CEDCA) do estado, solicitando ajuda.
O importante é que sejam tomadas essas iniciativas, de modo rápido e efetivo.
As autoridades e as instituições têm papel central. É preciso que os governos, assim como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Unicef, apresentem ações de proteção, evitando ainda mais o agravamento da vulnerabilidade infanto-adolescente.
Com um dos pilares mais importantes ausente, a escola, surge como elemento que contribui para o aumento no índice de violência, haja vista que muitos relatos de abusos e agressões sobrevêm no meio escolar e, sem esse mecanismo, as crianças e adolescentes se manterão mais isolados da proteção estatal e mais próximas ao agressor[6].
Sem sombra de dúvidas, a violência sistemática contra crianças e adolescentes causará traumas e as consequências psicológicas virão pós-pandemia, com o adoecimento físico e emocional, desenvolvendo comportamentos autodestrutivos ou mesmo transtornos psicológicos.
Diante dessa preocupante realidade, destacamos a importância de iniciativas, como a realizada por Maria Farinha Filmes, Instituto Liberta e Alana, que lançou o documentário Um Crime Entre Nós, dirigido por Adriana Yañez, no qual investiga os motivos que posicionam o Brasil em segundo lugar entre os países com maior número de ocorrências de Exploração Sexual Infantil, segundo a The Freedom Fund.
Acreditamos que, em cada criança, deveria ser estampada a frase: tratar com cuidado, contém sonhos. Essa, escrita, feita por um autor desconhecido, que já circulou nas redes sociais, contém singela, mas profunda verdade – que, muitas vezes, é ignorada por aqueles que mais deveriam zelar: a família.
[1] KRISTENSEN, Chistian Haag; OLIVEIRA, Margrit Sauer; FLORES, Renato Zamora. Violência contra crianças e adolescentes na Grande Porto Alegre. In: et al. Violência doméstica. Porto Alegre: Fundação Maurício Sirotsky – AMENCAR, 1998, p.115, apud Azambuja. Maria Regina Fay de. Incesto e Alienação Parental, Coordenado por Maria Berenice Dias, 3ed. p. 388.
[2] AZEVEDO, M. A. e GUERRA, V. N. (orgs) Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1997, p. 32-33.
[3] Hester, Marianne. Disponível em <https://www.nytimes.com/2020/04/06/world/coronavirus-domestic-violence.html> acesso em 12.05.2020.
[4] Andrew M. Campbell. Journal Pre-proof : An Increasing Risk of Family Violence during the Covid-19 Pandemic: Strengthening Community Collaborations to Save Lives p. 04. Acesso em 12.05.2020.
[5] Dados disponíveis em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-04/sp-violencia-contra-mulher-aumenta-449-durante-pandemia#:~:text=SP%3A%20viol%C3%AAncia%20contra%20mulher%20aumenta%2044%2C9%25%20durante%20pandemia>. Acesso em 13.08.2020.
[6]As situações de abuso sexual infantil têm alta prevalência em nosso país. Com base no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)1 do Ministério da Saúde, no período de 2014 a 2018, foram registrados 29.628 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo que 87% são recorrentes (12.522 casos), acometidos por pessoas do universo familiar: por pais (12%), padrastos (12%) e outras pessoas conhecidas (26%). Dados do Disque 100(serviço ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que recebe denúncias anônimas sobre violências em todo o território brasileiro), referentes a 2018, apresentam um total de 17.093 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no país. Desse total, 13.418 denúncias se referiam a abuso sexual e 3.675 foram registrados como exploração sexual. Nos casos de abuso sexual, 73,44% das vítimas eram meninas e 18,60% meninos. Cerca de 90% das denúncias de abuso sexual eram de caráter intrafamiliar, sendo que 70% dos casos tem como autor o pai, o padrasto ou a mãe da criança. Fonte Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Disponível em <https://www.spsp.org.br/2020/05/19/isolamento-social-e-riscos-de-abuso-sexual-infantil/>. Acesso em 13.08.2020.