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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Economia em Rede e Negócios em Rede

 

Artigo do advogado, Mestre em Direito pela Unisinos, autor e professor


Desde a Terceira Revolução Industrial (revolução da internet, era da informatização), ocorrida desde o último quarto do século XX, a economia e seus contratos passam por uma reestruturação conceitual. 

A origem dos contratos repousa no escambo e nas relações de clientela, que remontam a Roma arcaica. Do escambo originou-se a compra e venda e, da relação de clientela, originou-se a prestação de serviços. 

Ao longo de uma evolução de milênios, os Códigos Napoleônicos e todos que neles se inspiram construíram uma teoria de direito obrigacional prototipada nos modelos da compra e venda (escambo) e da prestação de serviços (relação de clientela), geradoras, respectivamente, de obrigações de dar e fazer. 

Já no na segunda metade do século XVIII, a Primeira Revolução Industrial (máquina a vapor) fez surgir a necessidade de escoamento dos produtos manufaturados, fomentando atividades mais antigas, que passaram a ser regulamentadas por leis em diversos países ocidentais: a representação comercial e a distribuição. Duzentos anos depois, surge, nos Estados Unidos, a franquia empresarial como outra forma de unir empresários para fins comerciais. 

No último quarto do século XX, esses modelos híbridos, como representações comerciais, distribuições e franquias, evoluíram para as mais diversas formas de plataformas digitais, como Uber, Rappi, Loggi, Gympass, Airbnb, Grilo, dentre outras (artigo 425 do Código Civil). 

Franquias, representações comerciais, associações comerciais, distribuições, plataformas digitais e outros modelos atípicos (artigo 425 do Código Civil) são “negócios em rede”. E são em redes porque não são grupos societários (ou seja, não são relações societárias, conforme dispõe a lei 6.404/76), nem relações de emprego, nem relações de consumos. São, portanto, contratos comerciais e civis, vulgarmente chamados de parcerias. 

Sobre a natureza jurídicas dessas plataformas digitais, importante referir que o Tribunal Superior do Trabalho, em duas decisões recentes, decidiu que a relação contratual entre a plataforma Uber e seus motoristas não é relação de emprego. O mesmo raciocínio valerá para as demais plataformas como Rappi, Loggi e Ifood. 

Veja-se que a relação contratual entre a Uber e seus motoristas é muito similar às relações contratuais dos representantes comerciais, distribuidores e franqueados: 

· plataformas de transporte = franqueadores = indústria/importador 

· motoristas = franqueados = representantes/distribuidores 

As diferenças entre esses contratos e os tradicionais contratos de compra e venda e prestação de serviços são marcantes. Enquanto a compra e venda e a prestação de serviços estão insertas em uma relação bilateral de competitividade, os negócios em redes estão insertos em relação coletivas de cooperação e coordenação. 

Essa é a atual mudança estrutural no mundo dos negócios: dos negócios bilaterais e competitivos para os negócios multilaterais, cooperativos e coordenados. Trata-se do capitalismo de alianças, ou capitalismo colaborativo, ou nova economia colaborativa. 

Todavia, por que essa mudança estrutural da forma de se fazer negócios, ou melhor, organizar negócios, é teoricamente importante para o direito contratual e o direito obrigacional? 

A resposta está na identificação das obrigações originadas pelos negócios em rede. Ao contrário de toda a milenar história dos modelos de contratos, os negócios em rede não geram como obrigações principais apenas um dar ou um fazer, pois os negócios em redes não são formados por contratos de compra e venda e de prestação de serviços. Entre franqueador e franqueado, não há uma compra e venda ou uma prestação de serviços. E o mesmo ocorre entre a indústria e o importador e seu representante comercial, ou entre as plataformas de transporte e seus motoristas, ou entre os associados e a associação comercial, ou entre os membros das redes de cooperação em geral. 

As obrigações que se originam dos negócios em rede são derivadas dos deveres de cooperação e coordenação, derivadas dos princípios da probidade e da boa fé (objetivas) insculpidos no artigo 422 do Código Civil. São obrigações consideradas principais no contexto dos negócios em rede. 

A questão é como tratar uma situação de nítida má-fé contratual entre players que, a princípio, deveriam ser parceiros. É possível aceitar que o descumprimento de obrigações derivadas dos princípios da probidade e da boa-fé gere o inadimplemento substancia do contrato? 

Um franqueador que desvia clientes dos seus franqueados para si descumpre qual obrigação contratual? Uma plataforma de transporte que suspende um motorista sem garantir-lhe o direito de defesa descumpre qual obrigação contratual? O formatador de uma rede de cooperação atípica que deixa de assessorar seus parceiros descumpre qual obrigação contratual? 

Veja-se que para todas essas respostas deve-se considerar que a quase totalidade dos negócios em rede são contratualizados por instrumento de adesão. Exatamente: contratos civis e comerciais de adesão (fazendo incidir os artigos 423 e 424 do Código Civil). Ou seja, quem redige o contrato geralmente não prevê as suas múltiplas possibilidades de descumprimento contratual; apenas prevê as possibilidades dos parceiros aderentes. 

E mais, considerando-se que os negócios em rede são “coleções” de contratos bilaterais de longo prazo (a rede de franquia McDonald’s é formada por mais de 35 mil contratos bilaterais de adesão no planeta; a plataforma Uber é formada por mais de 1 milhão de contratos bilaterais de adesão no Brasil), há uma dimensão transubjetiva (direitos coletivos) pela qual orbita a função social do contrato (artigo 421 do Código Civil). 

Esses são alguns dos ingredientes que compõem as contratações da nova economia, da economia em rede, dos negócios em rede, e que põe em cheque a tradicional dogmática de direito obrigacional e contratual, construída em cima de suposições como a que os negócios são apenas competitivos e as partes são naturalmente iguais. E sobre essa tradicional dogmática, cito Bebeto Alves: “Essa janela não dá para o mundo, nem dá para o fundo, dá num quintal. Essa janela traz magra luz do dia, não alumia ao fundo e o meu olhar. Essa janela, triste fotografia tirada tanto tempo atrás” (Janela, Salvo 79/80).

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