Artigo do Desembargador Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira- Professor da Faculdade de Direito da UFRGS e Membro do IARGS
Tema: BOBBIO e CÍCERO
Há algum tempo, procuro acentuar estarmos vivendo tempos difíceis. Basta um pouco de senso crítico para que alguém, pensando sobre o vivenciado dia a dia, concorde sobre a existência de dificuldades a serem enfrentadas. Um dos mais eminentes ministros do judiciário vinha acentuando, por vezes, estarmos “vivendo tempos estranhos”. Sem dúvida tinha razão. Aliás, frases semelhantes vêm sendo repetidas historicamente.
Cícero, num diálogo com Casca, em uma noitada romana, ouviu de seu interlocutor que acreditava em prodígios prenunciadores de algo portentoso ou até de situações imprevisíveis. Coube, então, ao orador filósofo observar enfaticamente: “Deveras, estes são tempos muito estranhos”, frase a ele atribuída por Shakespeare na tragédia Júlio César. Teria Cícero dito algo semelhante? Ou foi o gênio do Bardo que utilizou Cícero para criar o clima estranho em que se desenvolveu a tragédia nos idos de março em quarenta e quatro, antes de nossa era.
O certo é que sempre haverá tempos estranhos, difíceis ou situações indesejáveis ou constrangedoras. É como dizia um escritor no “Assim Caminha a Humanidade” ao apreciar comportamentos, tanto na adolescência como na juventude, na mocidade, na maturidade e até na velhice (fases da vida tão bem identificadas por Celso Lafer ao prefaciar Bobbio).
Aliás, sempre apreciei Norberto Bobbio por suas magníficas ideias e pensamentos, e, principalmente, na Teoria da Norma Jurídica, como na insuperável Teoria do Ordenamento Jurídico.
Nele passei a estudar, meditar e até a criticar apenas em um de seus últimos livros, O Tempo da Memória, acompanhado do subtítulo De Senectute. Sem dúvida, a obra recebeu inspirações em Marco Túlio Cícero no seu Saber Envelhecer, mesmo com a intercorrência de dois mil anos. Há nelas, todavia, pontos divergentes a serem aqui demonstrados.
Bobbio manifestou ter sentido o peso da idade, mesmo tendo escrito “A Mim Mesmo” no prólogo de suas memórias, como já o fizera Mika Valtari no Egípcio ao escrevê-lo, como disse, “para mim, apenas”. Ao escrever para si mesmo, Bobbio confessa ter desejado “aprender a arte de viver, no entanto, agravada pela convicção de nunca a ter compreendido bem”.
Um pouco adiante, segue de modo mais profundo ao salientar: “Sempre me considerei e sempre me consideraram um pessimista. O pessimismo não é uma filosofia, mas um estado de espírito”. E argumenta: “...é mais prudente ser pessimista do que otimista, porque as coisas deste mundo sempre vão de mal a pior”. Ou seja, admite razão à frase de estarmos “vivendo tempos difíceis”; ou pelo dizer de Cícero que afirmava, segundo Shakespeare, “Deveras estes são tempos muito estranhos”.
Além disso, Bobbio salienta em obra permanente a “marginalização do velho pelo seu envelhecimento cultural, acompanhado tanto pelo biológico, como pelo social”. Será isso um viver verdadeiro?
Preocupa-se em defender o ponto de vista de que o envelhecimento leva a recordações sem ideias de progresso. Parece-lhe que a “idade avançada tornou-se impaciente a espera pela morte”. Segue além, afirmando que “quase todos os velhos fazem confidências (algo semelhante ao referido à pensadora Sandra Petrignani, autora de Vecchi), que já não têm esperanças”. E arremata: “Quem louva a velhice nunca a teve diante dos olhos”. Neste mesmo contexto, é importante examinar a obra de Cícero no “Saber Envelhecer”.
Sua filosofia de vida demonstra-se oposta às manifestações pessimistas de Bobbio. Escrevendo sobre a velhice, entende que “os idosos são inteligentes, agradáveis e divertidos, pois suportam facilmente sua velhice, ao passo que a acrimônia, o temperamento triste e a rabugice são deploráveis em qualquer idade”. Por isso, pode-se dizer, sem medo de errar, sobre a existência de inúmeros jovens e pessoas maduras que demonstram um temperamento agressivo e ríspido, sem aceitar observações que contrariem seus sentimentos e anseios.
Dizia ainda Cícero, a Cipião e Lélio, que “os melhores anos para a velhice são o conhecimento e a prática de virtudes”. E mais: “Cultivados em qualquer idade, eles dão frutos soberbos ao término de existência bem vivida. Eles não os abandonam e trazem consciência de terem vivido sabiamente...”.
Segue o otimismo do orador filósofo, ao afirmar que “a velhice só é honrada quando se resiste e se conserva sua ascedência.” A experiência que se vive ou se viveu mostra que os velhos, por tudo o que alcançaram, sabem ou poderiam saber que a vivência lhes deu sabedoria. Ou que o envelhecimento pode atingir o corpo, mas nunca o espírito ou a capacidade de ter consciência e saber como se comportar em sociedade.
Em seu livro ensina que “à noite deve lembrar-se do que disse ou ouviu na jornada. Seria uma ginástica para a inteligência”. Assim, “permanece ativo”, sem sofrer por pensamentos pessimistas, mesmo sendo velho. O velho sabe como se conduzir dentro das circunstâncias da vida, podendo dirigir-se socialmente segundo o que assimilou. Terá também consciência de como deva se comportar para alcançar aqueles objetivos ainda presentes em sua mente. Ou seja, os velhos inteligentes têm objetivos, uns mais, outros menos, segundo a compreensão que cada um tem de fazer ou pensar filosoficamente. Aliás, a filosofia dos idosos nasce desde o passado e permanece no presente em relação a suas experiências, desejos e finalidades. Daí se reverenciar Cícero quando acentuava considerar a velhice “fácil de suportar, pois é leve e agradável”.
Certa vez, encontrei, nas proximidades de uma livraria, um velho conhecido, uns quinze anos mais idoso que tinha sido pediatra de meus filhos. Queixava-se da velhice, pois pouco lhe sobrava para viver. Parecia muito pessimista. Pedi para que ficasse tomando um cafezinho enquanto eu ia comprar um livro. Trouxe-lhe de presente o Saber Envelhecer, de Cícero, já com dedicatória em que lhe expressava a minha admiração por sua enriquecedora vida. Dias depois, telefonou-me agradecendo o livro e manifestando sua gratidão por ter-lhe revelado a face agradável e otimista da velhice. Sei que esse livro lhe devolveu ideias e vivências mais agradáveis, ao seguir a filosofia de Cícero, em sua idade bem avançada.
Pode-se dizer que as palavras e ensinamentos do grande orador e filósofo romano, com mais de dois mil anos e com seu saber, servem para os seres humanos, em todas as suas idades, para a boa compreensão da vida. O pensamento de Cícero sobre o envelhecimento, pode-se dizer, sobrepuja as palavras, de Bobbio, no que têm elas de pessimismo, no seu De Senectude. Nesse cotejo de pensamentos, o de dois mil anos, quanto ao envelhecimento, leva vantagem por ensinar mais alegria de viver. Mas ressalte-se, quanto a Bobbio, que sua obra filosófica, humanista e jurídica, absolutamente admiráveis e portadoras de um contributo cultural extraordinário para a civilização, mantém o grande mestre italiano de Turin como um dos mais eminentes pensadores da atualidade.
Após essa óbvia ressalva de reverência a Bobbio, e finalizando esses pensamentos quanto às ideias sobre a velhice e também sobre os diversos momentos etários vividos pelas pessoas, cabe, ao louvar Cícero, por tudo o que fez em uma vida brilhante, manifestar o entendimento de que as condutas de todos os que vivem em sociedade devem estar, segundo seus ensinamentos em perfeita conformidade com a correção e licitude social e em perfeita adequação com as finalidades da ordem jurídica, a grande preocupação de vida desses dois grandes pensadores.
Primo e padrinho querido, ainda que esteja por entrar nos setenta e não me sinta já um velho, teu brilhante texto me pôs a refletir. Obrigado.
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