Opções

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Artigo- Contribuições de Kant para o reconhecimento universal dos Direitos Humanos

 

Artigo do Dr. Tiago Ghellar Fürst, associado do IARGS
Tema: Contribuições de Kant para o reconhecimento universal dos Direitos Humanos


A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral da ONU, em 1948, como um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, assenta, em seu preâmbulo, a dignidade de todos os membros da família humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

O reconhecimento da dignidade humana em escala planetária, que está a celebrar os seus 75 anos, inaugurou uma nova concepção da vida internacional, refletindo-se no direito interno de muitos países – inclusive do Brasil, que adota, desde 1988, a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República (art. 1º, III da Constituição Federal).

Sabe-se que Immanuel Kant (1724-1804), amplamente considerado o principal filósofo da era moderna, deixou vasta contribuição para a ciência do direito, notadamente na teoria da norma jurídica, com a conceituação do imperativo categórico e imperativo hipotético (BOBBIO, 2014, p. 94-95). Menos conhecidas, porém, são suas reflexões sobre a dignidade humana e a necessidade de mecanismos internacionais para o seu resgate em nível global.

O centro da doutrina moral de Kant é que o homem não tem preço, mas dignidade. O ser humano não pode ser sacrificado em nome do todo, ou da maioria, como no utilitarismo. Por tal motivo, deve ser concebido como um fim em si mesmo, não podendo ser tratado como meio para fins externos a si, pois não tem equivalente (KANT, 2000, p. 79).

Atribuir dignidade a alguém impõe determinado comportamento aos demais. A dignidade é, pois, a manifestação vinculante de uma identidade, dotada de valor em si mesma, de forma objetiva e natural. Não se trata, portanto, de algo meramente subjetivo ou abstrato, pois “o reconhecimento ocorre quando alguém manifesta, por sua atitude, o valor que percebe na identidade de outrem.” (BARZOTTO, 2010, p. 29).

No plano jurídico, o reconhecimento planetário da dignidade do ser humano foi proposto por Kant em suas obras de maturidade. Em À paz perpétua (1795), o filósofo prussiano disserta sobre o Estado de Direito, o regime republicano e a necessidade de um novo direito internacional, denominado por ele direito cosmopolítico (jus cosmopoliticum). Em Doutrina do Direito (1797), prossegue sua tentativa de, por meio desse novo direito, garantir a convivência pacífica entre todos os povos da Terra.

Kant vislumbrou, no âmbito do Direito Público, três possibilidades jurídicas: o direito de cidadania (jus civitatis), que rege as relações jurídicas internas das pessoas com o Estado; o direito internacional público (jus gentium), que cuida das relações dos Estados entre si; e agregou o seu direito cosmopolítico (jus cosmopoliticum), que diz respeito aos homens em geral, numa comunidade universal da humanidade.

A inovação conceitual do direito cosmopolítico tem como fundamento o direito à hospitalidade universal, um direito comum a todos os seres humanos da face da Terra, que decorre da Razão. Não se trata, pois, de um princípio apenas ético, mas sim do direito natural, isto é, de “certas leis universais de reciprocidade de ação (commercium) possível” (KANT, 2013, p. 199-200).

Para Kant, já no final do Séc. XVIII, era chegada a época da história em que a violação de um direito, ocorrida num ponto da Terra, pode ser sentida por todos os povos. Tal constatação nunca foi tão atual. Nesse começo do Séc. XXI, em que as economias estão cada vez mais integradas em nível global, o sentido de comunidade internacional é uma realidade inegável. Por outro lado, as mudanças climáticas, as crises migratórias, o terrorismo, as guerras e o medo constante sobre o uso de armas nucleares, são problemas que afetam a humanidade como um todo. O crescimento da injustiça global, dos nacionalismos e das xenofobias geram gravíssimas violações dos direitos mais básicos do ser humano.

Está presente, pois, a condição histórica para a incidência (plano da eficácia) desse direito natural (universalmente existente e válido), fundamentado na dignidade da pessoa humana, mencionado por Kant como um código não escrito complementar ao direito positivo (KANT, 2017, p. 41):

“Já que agora a comunidade (mais estreita, mais larga), difundida sem exceção entre os povos da Terra, foi tão longe que a infração do direito em um lugar da Terra é sentido em todos, não é, assim, a ideia de um direito cosmopolita nenhum modo de representação fantasioso e extravagante do direito, mas um complemento necessário do código não escrito, tanto do direito de Estado como do direito internacional, para um direito público dos homens em geral e, assim, para a paz perpétua.”

Como visto, é justamente a sensibilidade em relação à violação dos direitos humanos que ocasionou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Trata-se de expressão do jus cosmopoliticum, direito natural propagado por Kant, no final do século XVIII, como decorrência do reconhecimento e respeito à dignidade da pessoa humana.

Conforme o preâmbulo do documento, escrito há 75 anos, não há possibilidade de liberdade, da justiça e paz no mundo sem o reconhecimento (e efetiva aplicação universal) do valor intrínseco de todos os seres humanos, sem distinção alguma de nacionalidade, raça, cor, sexo, língua, religião, condição social ou opinião política.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Edipro, 2014.

BARZOTTO, Luis Fernando. Filosofia do Direito: os conceitos fundamentais e a tradição jusnaturalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2017.

KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. São Paulo: Ícone, 2013.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Ediouro, 2000.

Nenhum comentário:

Postar um comentário