Mersault era dotado de
personalidade singular. A narrativa, por ele próprio, induz a pensar que seria
um francês habitando Argel. E, por mais de uma vez, refere o “Árabe”, a
“mouresca”, como estranhos. Vida monótona, trabalho burocrático à tarde numa empresa
de exportação. Em quase tudo se mostra
indiferente: ao convite feito pelo patrão para ir para Paris, com vantagem
financeira; à pergunta de Marie, sua amante, se a amava; ou se queria casar com
ela; à agressão a uma amante, por Raymond, vizinho de apartamento e rufião. Seu
interesse, breve bem-estar, mais do que alegria, era jantar no Céleste; olhar o
mar e o céu, a beleza das mulheres, fazer sexo com Marie. Uma vida virtualmente
mecânica.
Em um domingo, Mersault mata um
homem, à beira-mar. Processado, abre mão de um advogado. O dativo indicado não
logra dele qualquer versão favorável, nem mesmo para a falta de emoção com a
morte da mãe. Diante do juiz de instrução, igualmente, nada diz que possa
favorecê-lo, e nega acreditar em Deus, mesmo diante da insistência. Na verdade, ocorrera uma cadeia de fatos
aparentemente fortuitos: uma rixa entre o irmão da amante, revoltado com os
espancamentos dela, e Raymond. Mersault liga-se ocasionalmente a este homem; numa
segunda rixa, na praia, o amigo se defende com um soco e é ferido a faca. Uma
hora depois, Mersault volta ao local, “em busca de uma fonte fresca”. Tinha
ainda no bolso um revólver passado por Masson, amigo de Raymond, para defesa
ocasional. Ali, encontra o mesmo “árabe”, que, diante da aproximação, ergue uma
faca. Então, Mersault dispara um tiro. Instantes depois, os quatro seguintes, o
homem já caído inerte. Uma cadeia de fatos improváveis, inerente ao absurdo de
Camus.
Para a acusação, essa série de
fatos se alinhava para levar à premeditação condenatória. Mas outros
argumentos, relativos à sua personalidade, produzem ainda mais efeito sobre os
jurados: Mersault havia posto a mãe num asilo, próximo de Argel; não havia
chorado nem demonstrado emoção em seu enterro; havia retornado imediatamente e
assistido no dia seguinte o filme de um conhecido cômico francês, junto com a
amante. Enfim, eram provas irrefutáveis de uma personalidade apta a delinquir,
perigosa. A defesa, a seu turno, procura mostrar que houvera uma cadeia de
casualidades, sem qualquer premeditação, e que ele era homem trabalhador e
confiável.
Durante a sessão de julgamento,
Mersault é mais observador, como os jornalistas presentes na sala lotada, do
que réu, preocupado com sua sorte. Tudo lhe parece alheio e teatral: gestos,
retórica exagerada, fisionomias dos jurados. Diante da pergunta do porquê dos
tiros seguintes, atribui absurdamente “ao sol”.
A final, é condenado pelo júri a morrer na guilhotina, por ter
premeditado a morte de um homem.
Na prisão, um padre, depois de
várias recusas, insiste num arrependimento e numa conversão. Mersault resiste
todo tempo, e acaba por explodir em cólera, mostrando indignação e uma paixão
inaudita em defender o direito à pequena vida e à própria indiferença. E se
mostra agora disposto a morrer satisfeito, considerando que vivera feliz, e
desejando que houvesse muitos espectadores no dia da execução e que todos o
recebessem com gritos de raiva.
A obra marca, entre outras, a ideia do absurdo, como centro da existência humana. Camus recebeu o Prêmio Nobel em 1957, três anos de morrer num acidente automobilístico.
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