Artigo do membro do Conselho Superior do IARGS, Dr. Norberto da Costa Caruso Mac Donald
Tema: “UBI SOCIETAS, IBI JUS”
Não fossem particularidades de nossa época, seria redundante evocar o velho brocardo, que intitula estas notas, tantas vezes repetido aos estudantes e operadores do direito, além de vivenciado pelas pessoas em geral. Mas, não faz muito tempo, houve até quem afirmasse que “a sociedade não existe”, o que dava a entender que a sociedade se resume a uma soma dos indivíduos que fazem parte dela (1), desconsiderando a sua abrangência dos elementos indispensáveis ao convívio dos seres humanos, animais políticos segundo a filosofia aristotélica, que só desenvolvem suas características verdadeiramente humanas na vida comunitária (o discurso, a amizade, a razão dialética, a deliberação sobre o bem etc.). É que, não raro, a clareza de um conceito, e mesmo de uma realidade, é ignorada em prol de uma visão distorcida. Como leciona Tzvetan Todorov (1), “o esquecimento da dimensão social, constitutiva de cada ser humano, não é apenas um erro intelectual. Existe um perigo real no fato de adotar-se, com base nessa imagem mutilada daquilo que fundamenta nossa humanidade, uma política cujos efeitos seriam igualmente mutilados.”
Elucidativa a respeito das relações seres humanos–sociedade–direito é a síntese apresentada por Manfred Rehbinder e Salvatore Patti (2): “Somente um ser que vive socialmente pode, pois, ter uma língua e, em consequência, pensar conceitualmente. Disso resulta, ademais, que o ser humano não poderia existir sem sociedade, e, por conseguinte, sem normas. Resumindo, devemos, portanto, constatar que a humanidade e o pensamento conceitual, o pensamento conceitual e a língua, a língua e a coletividade, a coletividade e as normas de comportamento transmitidas, se condicionam reciprocamente. Se viesse a faltar um desses termos, viriam a faltar todos os outros, e nenhum deles pode ser propriamente compreendido sem ter presente esta sua relatividade com respeito aos outros. Consequentemente, não pode ser compreendido isoladamente nem o direito, qual complexo de normas de comportamento transmitidas.”
Malgrado suas divergências, influentes doutrinas clássicas não destoam quanto à importância do direito para a vida social. A partir de explanações de Guido Fassò (3) e Philippe Raynaud (4), pode-se concluir que as filosofias de Hobbes, Locke e Rousseau têm algo fundamental em comum: as três reconhecem a imprescindibilidade do direito para regular a sociedade, tanto como condição para a eliminação dos conflitos do estado de natureza, quanto como forma de possibilitar o convívio civilizado entre seres humanos.
Consentânea com essa conclusão, a advertência contida em artigo de Jean-François Kervégan (5) sobre a filosofia política no século XIX: “A lição a extrair do entusiasmo irrefletido da Revolução Francesa, que Kant condena, é que não é preciso querer, como Robespierre, moralizar os homens a qualquer preço. A verdadeira política é aquela que se submete ao direito, em vez de ter um discurso moral que é seguidamente a veste do exercício cínico do poder.” Hoje, estão a exigir especial atenção a ampliação do primado do poder econômico sobre o poder político e uma abrangente “mercadorização”: “Não se trata apenas de transformar algo em mercadoria, mas de inscrever a lógica concorrencial do mercado nos comportamentos ou nas relações e nos processos que não foram e não necessariamente serão transformados em mercadorias” (N.E. in A nova razão do mundo, Pierre Dardot/Christian Laval — Ed. Boitempo, 2016). Como observa Francesco Galgano (6), com a classe deposta pela Revolução de 1789, a nova classe dominante aprendeu que a lei pode ser um formidável instrumento de política econômica.
Com o instigante título Fine del diritto?, Pietro Rossi (7) organizou uma obra em que diversos juristas examinaram as características do direito contemporâneo. À interrogação contida no título do livro, a resposta dos estudiosos do direito consultados foi, como não poderia deixar de ser, unanimemente negativa. Após analisar os diversos textos, o organizador da obra conclui no posfácio: “Não, não estamos na véspera do fim do direito; o que está declinando é uma certa forma de direito, e, com ela, a sua imagem tradicional, a imagem do direito moderno como direito ‘racional’ formulada por Weber. (...), isto é, a situação do direito nos países europeus mostra-se hoje muito distante daquela orientação racional-formal que Max Weber havia indicado como característica do desenvolvimento jurídico moderno. O processo a que assistimos é sobretudo (...) o de uma metamorfose do direito.” Ressalva o mesmo autor que, qualquer que seja o curso dos acontecimentos, é possível que, nada obstante os “longos prazos” do direito, o cenário jurídico se transforme de maneira substancial , de modo a resultar distinto não só daquele de ontem, mas também daquele em que nos conduzimos nos tempos mais recentes. Porém, independentemente do sentido e resultado da evolução, o tradicional brocardo não será superado, porquanto, como enfatiza Paolo Grossi (8), “o direito não está necessariamente ligado a uma entidade social e politicamente oficial” , sendo “o referente necessário do direito somente a sociedade, a sociedade como realidade complexa, articuladíssima, com a possibilidade de que cada uma de suas articulações produza direito”; “o social é o âmbito imprescindível do direito”.
Na atualidade, tem sido destacada a difusão planetária dos modelos contratuais atípicos, em virtude de que, comenta Francesco Galgano (9), “A realidade presente é sempre mais variável no tempo e sempre mais uniforme no espaço. Daí a limitada capacidade da lei nacional à inovação jurídica: a economia contemporânea é uma economia transnacional, em antítese com o caráter nacional dos sistemas legislativos, e é uma economia em contínua transformação, a qual reclama flexíveis instrumentos de adequação do direito às mudanças da realidade, em oposição com a rigidez das leis. Numa sociedade transnacional em rápida transformação, o principal instrumento da inovação jurídica é o contrato.”
Efetivamente, confirma Tzvetan Todorov (1), de algumas décadas para cá se observa, nas democracias ocidentais, uma mudança que consiste em ampliar o âmbito dos contratos e em diminuir o das leis, mutação que foi grandemente acelerada pela globalização da economia. Todavia, consoante pondera Galgano (9), “A técnica do contrato oferece possibilidades novas às exigências de regulação da sociedade civil e do mercado, mas encontra ao mesmo tempo os limites que são a ela intrínsecos; nem tudo aquilo que se pode implementar com lei é possível implementar com contrato. A função do contrato, substitutiva da lei, não pode estender-se a ponto de substituí-la na previsão de disposições que na lei são expressão de uma vontade soberana.”
Outrossim, especialmente quando é gritante a desproporção de poder dos contratantes, ou em casos em que se invoque a liberdade de contratar para sobrestar a aplicação de lei, tem sido questionada a utilização do contrato em lugar da lei. A partir de um caso concreto — preços extorsivos cobrados a vítimas de um furacão — Michael Sandel (10) lembra a manifestação da autoridade, instada a se pronunciar, sustentando o cabimento da aplicação da lei contra preços abusivos, e repudiando a ideia de que preços “inescrupulosos” sejam o reflexo de um mercado verdadeiramente livre, correspondendo ao valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem: “Numa situação de emergência, compradores coagidos não têm liberdade. A compra de artigos básicos e a busca de abrigo seguro são algo que lhes é imposto.”
Quanto à clamorosa desproporção de poder dos contratantes, Todorov (1) encontra pertinência na célebre assertiva do padre dominicano Henri-Dominique Lacordaire, na 52ª Conferência de Notre Dame (1848), em que ele — ao confrontar a questão das “liberdades formais” e a das “liberdades reais” — afirma que, no caso de desigualdade relevante dos contratantes, o que alforria é a lei, não a liberdade. Aliás, Pietro Rossi, no preâmbulo da obra, supra citada, aponta que a demanda por igualdade formal já se mostra substituída pela reivindicação de igualdade substancial.
A esse respeito, importante reflexo da socialidade, um dos princípios norteadores da elaboração do Código Civil/2002 (11), encontra-se no art. 421, que positivou a função social do contrato, ou seja, “o novo Código abandonou a posição individualista para afirmar que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”(12). No mesmo sentido, o entendimento de Emílio Betti ao afirmar que não pode divisar na soberania do indivíduo o ideal positivo de uma nova ordem do direito privado, nem um cânone plausível de interpretação de um Código Civil destinado a uma sociedade moderna, em que se verifica um crescente afirmar-se das exigências da solidariedade social. (13)
Como nem sempre as leis são justas, coloca-se a questão da validade da lei injusta, sobre a qual a variedade de opiniões é considerável. Edgar Bodenheimer (11) traz importantes lições a esse respeito: “(...) o irrestrito reconhecimento do direito de ignorar e não cumprir a lei injusta enfraqueceria demais a certeza e a autoridade do sistema legal. Dir-se-ia então ser preciso estabelecer uma forte presunção da validade do direito positivo elaborado de acordo com a técnica legislativa adequada. Nos países onde o direito de rever a constitucionalidade das leis ordinárias é confiado ao poder judiciário, essa presunção pode às vezes — como nos Estados Unidos da América — ser destruída pela demonstração de que o conteúdo normativo de uma lei ou decreto não satisfaz ao critério de razoabilidade, igualdade ou do due process, tal como estabelecido na Constituição: demonstrado isso, espera-se que os juízes desconheçam a validade do ato legislativo falho, no todo ou em parte. Onde existem tais meios institucionais [como no Brasil] de se obliterar a lei objetável, tudo indica — a menos que se evidencie uma total, ou quase total, falta de independência do judiciário, coisa muito difícil de acontecer — que se considerarão esses meios os únicos de que se possa lançar mão para reparar injustiças cometidas pelo legislador.”
Neste passo, mostra-se oportuno — principalmente por seu alcance preventivo — lembrar, seguindo Guido Fassò (12), que, na Itália fascista, a doutrina juspositivista formalista, há muitos decênios radicada no país, continuou a ser aplicada. Isso serviu, por um certo período, para limitar o absolutismo estatal, contido dentro das formas da legalidade. Quando, porém, os órgãos legislativos e administrativos foram “fascitizados” , o princípio formalista-positivista da legalidade, antes barreira ao poder do Estado, tornou-se instrumento dele, e com meios formalmente legais foram pouco a pouco suprimidos ou tornados inoperantes os institutos que garantem a liberdade dos cidadãos. Enquanto o fascismo italiano aceitou com indiferença o dominante positivismo jurídico, dele servindo-se oportunamente para seus fins políticos, o análogo movimento chegado ao poder na Alemanha em 1933, o nacional-socialismo, o recusa em nome de total transformação da concepção do direito e do Estado. O juspositivismo é repudiado e substituído por uma espécie de doutrina do direito livre. O juiz deve ater-se, mais que à lei, às diretrizes do “führer”, que encarna o espírito da “comunidade do povo”, fonte primária do direito; julgar inspirando-se no “querer” do “führer”, não com base na própria valoração do interesse social. Tais ideologias, próprias de regimes totalitários, dispensam comentários. Basta recorrer à história.
Complementando as considerações sobre a relevância do controle de constitucionalidade, vale citar Paolo Grossi (8), que destaca características das Constituições modernas, alçadas à cúspide da hierarquia da legislação, como parâmetro para o exame da conformidade da lei com os valores em curso numa sociedade. Diz o jurista: “Na Constituição, texto e experiência, ao menos nos ‘princípios fundamentais’ e na ‘parte primeira’, vêm a fundir-se por pretender ser tal texto o instrumento de identificação de valores profundos. (...) Regras e princípios, que, justamente por serem espelho fiel de valores em curso, se caracterizam por uma normatividade de qualidade superior e à qual corresponde uma observância pelos cidadãos baseada sobre uma substancial adesão. (...) Por isso, frequentemente, as novas Constituições preveem expressamente a instituição de uma suprema magistratura chamada a julgar a coerência entre as disposições de uma lei e os valores contidos na Constituição.”
Temos a Constituição democrática de 1988 e o Supremo Tribunal Federal, competindo-lhe, precipuamente, a guarda da Constituição, prevista no art. 102 , cabendo-lhe o controle concentrado de constitucionalidade, ou seja, a competência originária para julgar, com eficácia “erga omnes”, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal — a par do controle difuso, exercido por todo o Poder Judiciário —; o art. 2º da CF proclama a independência e harmonia dos poderes da República. Assim, temos peças fundamentais da estrutura de um Estado Democrático de Direito. A supressão ou danificação de qualquer delas importaria em destruir a solidez do arcabouço institucional.
Questões, como as acima abordadas, merecem, por sua relevância, acurada análise. Recapitulá-las, numa perspectiva contemporânea com base nos ensinamentos de conceituados autores, ainda que de forma sucinta e sem pretensão de originalidade, visa apenas a contribuir com um roteiro para confrontar problemas do nosso tempo, dentro de uma visão compatível com os valores democráticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) TZVETAN TODOROV – Os inimigos íntimos da democracia – São Paulo: Companhia das Letras, 2012
(2) MANFRED REHBINDER/SALVATORE PATTI – Introduzione alla scienza giuridica – Padova:
Cedam, 1985
(3) GUIDO FASSÒ – Storia della filosofia del diritto, v. II – Bolonha: Il Mulino, 1968
(4) PHILIPPE RAYNAUD – La politique comme contrat – in Le Point, Paris, 2008
(5) JEAN-FRANÇOIS KERVÉGAN – Le XIXe siècle philosophe – in Le Point, Paris, 2008
(6) FRANCESO GALGANO – Lex Mercatoria – Bolonha: Il Mulino, 2001
(7) PIETRO ROSSI – Fine del diritto? – Bolonha: Il Mulino, 2009
(8) PAOLO GROSSI – Prima lezione di diritto – Roma-Bari: Ed. Laterza, 2016
(9) FRANCESCO GALGANO – La globalizzazione nello specchio del diritto – Bolonha: Il Mulino, 2005
(10) MICHAEL SANDEL – Justiça – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014
(11) MIGUEL REALE – O projeto do novo Código Civil – São Paulo: Saraiva, 1999
(12) RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR – As obrigações e os contratos – in Revista CEJ, v. 3, n. 9
(13) EMILIO BETTI – Una teoria del negozio giuridico – in Il diritto privato nella società moderna –
STEFANO RODOTÀ (org,) – Bolonha: Il Mulino, 1971
(14) EDGAR BODENHEIMER – Ciência do direito – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1966
(15) GUIDO FASSÒ – Storia della filosofia del diritto – v. III – Bolonha: Il Mulino, 1970
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