Artigo do associado do IARGS, Dr. Tiago Fürst, advogado, especialista em Direito Penal (UFRGS) e Tributário (IBET) e professor de Filosofia (Nova Acrópole)
Tema: A tirania do homem medíocre
A democracia se tornou um ideal a ser alcançado por todas as sociedades livres. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, em seu artigo XXIX, reza que, no exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano está sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, devendo respeitar os direitos e liberdades dos outros e “satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.
Em 1997, em reunião realizada pela ONU no Egito, com representantes de 128 países, foi aprovada a Declaração Universal da Democracia, com a finalidade de alinhavar conceitos fundamentais para o desenvolvimento da humanidade. Nela, são apresentados os princípios da democracia, com o destaque, logo no primeiro parágrafo, para o reconhecimento de que ela é um “ideal universalmente reconhecido”, baseado em valores compartilhados pelos povos de todo o mundo, constituindo-se em um direito básico de cidadania.
Nesse primeiro quarto do Séc. XXI, porém, a democracia está em crise. Até mesmo nos Estados Unidos, paradigma de sucesso democrático, com instituições sólidas e consolidadas, o sistema político e eleitoral tem sido colocado em xeque. No Brasil, não é diferente. Mas será esse um fenômeno recente? O Séc. XX, com suas grandes guerras mundiais, não experimentou algo parecido? E a Atenas do Séc. V a.C., berço do regime democrático?
A mais antiga e profunda referência em termos de filosofia e ciência política é encontrada na obra de Platão (427 - 347 a.C.), notadamente no diálogo “A República”. No Livro VIII, Platão expõe pela primeira vez, através do personagem Sócrates, as cinco formas de governo, cada uma delas decorrente das cinco espécies de alma (ou caráter) das pessoas. São elas a aristocracia (governo dos melhores, o qual, quando exercido por apenas um indivíduo, será denominada monarquia, ou governo do melhor); a timocracia (governo das honras); a oligarquia (governo de poucos); a democracia (governo de muitos) e a tirania (governo de um tirano).
Assim, não tem cabida uma interpretação exclusivamente política do diálogo. A construção da “Politeia” platônica, ou do Estado Ideal, repousa em pressuposto anunciado já no Livro II. Em busca do que seja a Justiça, o personagem Sócrates propõe uma ampliação de escala para facilitar a abordagem: passar, no curso da investigação, de um plano reduzido, restrito ao homem, a um plano maior, da cidade, no qual poder-se-ia tratar do tema em uma perspectiva mais abrangente. Platão busca conhecer e formar o Estado perfeito (Ideal) para conhecer e formar o homem perfeito (indivíduo). Nas palavras de Giovanni Reale: “Se é verdade que o Estado é uma projeção ampliada da alma, não menos verdade é que, finalmente, a sede autêntica do verdadeiro Estado e da verdadeira política é justamente a alma, e a verdadeira cidade é a cidade interior, que não está fora, mas dentro do homem.” (REALE, 1994, p. 243).
Na concepção platônica, o Estado é a Ideia unificadora da Justiça, que se manifesta de diferentes formas, por meio da harmonia entre governantes e governados. Para Platão, a sociedade é a reunião de seres humanos no melhor interesse de cada um, de modo a suprir as necessidades de todos. Porém, não há Estado sem uma Ideia unificadora, assim como não há indivíduo (ou aquele que não se divide) sem uma formação humana integral, uma educação para a ética, para uma forma de vida moral (PLATÃO, 2000, p. 216).
Para o sábio grego, uma sociedade justa e harmônica (Estado) só é possível se as pessoas que a constituem sejam, elas próprias, justas e harmonizadas (indivíduos): o coletivo (sociedade) é a soma das suas partes (seres humanos). Platão, que presenciou a decadência da democracia ateniense, com suas alternâncias entre oligarquia e tirania, defendia a aristocracia (governo dos melhores). Quando o indivíduo é incapaz de manter a integridade, tudo se corrompe, inclusive no coletivo. Para ele, tal virtude é adquirida e cultivada pela educação.
José Ingenieros (1877 - 1925), um dos filósofos sul-americanos mais influentes do Séc. XX, resgata as ideias de Platão. Em seu livro “O Homem Medíocre”, o autor argentino discorre sobre a emoção do ideal: um impulso misterioso em direção ao que há de mais sublime, aos ensinamentos dos grandes sábios (como Sócrates, Platão, Jesus Cristo, Giordano Bruno), à Beleza e à Verdade. Segundo ele, tal impulso deve ser custodiado internamente, para que nunca se apague, e cultivado pela educação (INGENIEROS, 2017, p. 15).
Segundo Ingenieros, não se deve esperar nada dos homens que entram na vida sem se entusiasmarem por algum ideal. Não se nasce jovem; é preciso adquirir a juventude. E, sem ideal, não é possível adquiri-la. Para criar uma partícula de Verdade, de Virtude, de Beleza, é necessário muito esforço. Porém, a maioria dos homens não trilha esse caminho: a eles o autor denomina “homem medíocre”. Para ele, a desigualdade humana é inegável, e tem sua origem na própria natureza. A mediocridade seria a ausência de características pessoais que permitam distinguir o indivíduo em sua sociedade. É através da educação que o homem adquire as ferramentas necessárias para se tornar um indivíduo, um pensador de si próprio.
A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal. São incapazes de virtude; ou não a concebem, ou ela lhes exige demasiado esforço. Trocam a sua honra por um cargo. Para evitar um perigo, renunciariam a viver. A moral do homem virtuoso reside na intenção e na finalidade das suas ações; se reflete mais nos feitos e na conduta exemplar do que nas palavras. A mediocridade é hipócrita e se preocupa mais com as aparências. O culto das aparências conduz ao desdém da realidade. O hipócrita não aspira a ser virtuoso, mas somente a parecê-lo: quer ser contado entre os virtuosos, mas somente pelos cargos e pelas honras que tal condição pode proporcionar.
Nesse clima de mediocridade, em que a mera honestidade é considerada uma grande virtude, surge o que o autor denomina mediocracia, ou o governo dos medíocres. Os Estados tornam-se mediocracias na medida em que a virtude desaparece. Para ele, isso ocorreu na Europa na primeira década do século XX. Quando o principal objetivo das sociedades está voltado à acumulação de bens materiais, se apaga do espírito coletivo todo vestígio da moral. Os que governam, todavia, não criam tal estado de coisas e de espírito: apenas representam-no. A mediocracia é um sinal da decadência moral, gerando uma tirania que demanda ser nivelado ou sucumbir. Assim como Platão, Ingenieros aponta a solução para a crise da democracia: fomentar a virtude e valorizar o trabalho daqueles que, por esforço próprio e através da educação formativa, reúnem as capacidades necessárias para conduzir os processos políticos, pois conduzem a si mesmos.
Existem muitas análises contemporâneas sobre a crise da democracia. HansHerman Hoppe, na obra “Democracia: o Deus que falhou” (2001), foi um dos primeiros escritores contemporâneos a criticar abertamente a democracia. Para ele, trata-se de uma máquina de destruição de riqueza, de desperdício econômico e de empobrecimento, além de uma causa sistemática de corrupção moral e degeneração. Ao constatar a crescente integração forçada dos países e a homogeneização cultural, propõe a descentralização de poder e o enfraquecimento do Estado. Sua análise está centrada no direito de propriedade. A democracia deve ser considerada uma decadência em relação à monarquia porque nesta, a propriedade é privada, ao passo que a democracia é um governo de propriedade pública e cada vez mais coletiva (HOPPE, 2014, p. 26).
Segundo o autor alemão, essas duas formas de governo – a da propriedade privada governamental (monarquia) e a da propriedade pública governamental (democracia) – se configuram a partir da decadência civilizatória da primeira (baseada na autoridade natural e no mérito pessoal) em direção à segunda (baseada na guerra e na revolução das massas). Não obstante, Hoppe enxerga na conduta de todos, governantes e governados, apenas o interesse próprio, egoísta, voltado à aquisição e manutenção da propriedade privada. Será o sentimento de justiça ou de injustiça em relação à distribuição dos bens que reduzirá ou aumentará as taxas de criminalidade. O autor não se propõe a analisar a formação moral dos cidadãos: o que ele denomina “descivilização progressiva” (infantilização e desmoralização da sociedade civil) tem suas causas, basicamente, no aumento da tributação e na má-distribuição da riqueza. Portanto, a solução proposta pelo autor é, por óbvio, materialista: as pessoas deveriam simplesmente deixar de consentir e de se dispor a cooperar com o Estado, negando-se ao pagamento de impostos, promovendo a sua deslegitimação perante a opinião pública e convencendo os demais a fazerem o mesmo (HOPPE, 2014, p. 303).
David Runciman, no livro “Como a democracia chega ao fim” (2017), constata que a democracia se tornou o “padrão ouro” de legitimidade no Séc. XX. Poucos regimes políticos, mais ou menos autoritários e desiguais, abriram mão desse símbolo para descreverem a si mesmos. Porém, no Séc. XXI, precisamos levar mais a sério a ideia de que a democracia chegará ao seu fim. O autor inglês, que é professor de política na Universidade de Cambridge, analisa a eleição de Donal Trump nos Estados Unidos e a decisão do Reino Unido de se retirar da União Europeia (“Brexit”), ambos ocorridos em 2016, para indagar se a democracia, tal como a conhecemos, ainda é a melhor forma de organização política. Para ele, o “futuro pós-democrático” permanece em aberto, mas aposta que, em linhas gerais, a política vai se tornar mais local, individualista e populista e, ao mesmo tampo, mais global, conectada em rede e tecnocrática.
Ao longo da obra, Runciman expõe algumas possibilidades e alternativas à democracia representativa contemporânea (que para o autor é o melhor regime, pois nele se goza de certas garantias e se é respeitado como pessoa, porque “todo o voto conta”): o “autoritarismo pragmático”, uma forma de monarquia absoluta em que é possível um crescimento econômico acelerado, mesmo que à custa das liberdades individuais, como é o caso da China; a “epistocracia”, ou “o governo daqueles que sabem”, onde somente os mais esclarecidos poderiam votar e ser votados, de modo a evitar o que que as decisões sejam tomadas de forma irracional, como ocorria, segundo o autor, na Grécia Antiga; e a “tecnologia liberada”, uma espécie de anarquia digital, em que o Estado seria mínimo e as pessoas teriam autonomia através de redes autossustentadas (RUNCIMAN, 2018, PP. 221-233).
Da leitura dos pensadores contemporâneos, fica evidente a lacuna em relação ao cerne da questão: nosso foco, atualmente, é nas coisas e nos sistemas, e não nas pessoas. Já nos pensadores clássicos, como Platão e Ingenieros, o fator humano, especialmente no que diz respeito à formação ética e moral dos cidadãos, é preponderante. Nesse aspecto, é necessário um resgate dos clássicos, de modo a superar a visão materialista e unidimensional do ser humano, típica das análises de nossa época.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOPPE, Hans-Herman. Democracia: o Deus que falhou. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2014.
INGENIEROS, José. O homem medíocre. 2ª ed. São Paulo: Ícone, 2017.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, Vol. II. São Paulo: Loyola, 1994.
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.
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