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segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Distorções do fomento segundo os valores do constitucionalismo ocidental

 Quando se fala na relação entre o Estado e a economia, normalmente se visualiza uma tensão entre a “autoridade” e a “liberdade”, que, a despeito da amplitude da ênfase em um ou outro desses polos, vai ser, em termos práticos, resolvida a partir dos espaços para o público e o privado definidos pelo ordenamento jurídico.

Esta tensão, entretanto, não se manifesta em todas as funções que o Estado desempenha em relação à economia (Constituição brasileira de 1988, artigo 174): por vezes, sem compelir o particular, acena com benefícios caso este desenvolva determinado tipo de atividade tido como necessário à coletividade, ou venha a estabelecer-se em região tida como prioridade em termos de atendimento.

Esta função econômica estatal será conhecida como “incentivo”, ou “fomento”, e pode dar-se das mais variadas formas: regimes fiscais mais brandos, financiamentos cujos encargos se mostrem menos aflitivos para o devedor do que os normalmente praticados pelas instituições financeiras privadas, subvenções, prêmios de produtividade, prestação de assistência por parte de entidades especializadas.

Postas as coisas nestes termos, pareceria não haver nenhuma possibilidade de se apresentar, seriamente, objeção a esta função econômica estatal, porque, a rigor, ela implica o tratamento do particular como um parceiro do Poder Público, e não como um antagonista deste.

Entretanto, também aqui comparecem alguns efeitos colaterais que conduziram, inclusive, a União Europeia a tratar com extrema reserva os “auxílios econômicos estatais”, justamente tendo em vista o pressuposto inerente à economia de mercado segundo o qual os concorrentes devem ter paridade de armas ao início da competição pelas preferências dos respectivos compradores, por este último vocábulo designados tanto os que pretendam adquirir os produtos e fruir dos serviços em caráter final quanto os que pretendam utilizar o produto ou serviço para o fim de produzir riquezas.

O fomento implica o estabelecimento de situações de assimetria entre os concorrentes , e essa assimetria necessita justificar-se, como todas, em um Estado de Direito: estabelecidas situações mais vantajosas para uns, para outros, haverá maior atribuição de encargos, e é precisamente em função disto que se sustenta dá interpretação restritiva às disposições que digam respeito à fruição de benefícios públicos de quaisquer natureza , e que a conclusão acerca de não estarem preenchidos os pressupostos para a aludida fruição não constitui sanção, mas tão-somente o enquadramento do sujeito pleiteante no regime geral, a que todos estejam sujeitos.

Na realidade, por mais que no âmbito discursivo seja sustentada a conformação da função econômica de fomento às características próprias do Estado de Direito, não deixa de existir, até mesmo em razão do próprio móvel que assegura a sobrevivência dos agentes do mercado – a busca do máximo benefício próprio -, é muito mais frequente a permanência da visão desta função estatal como uma expressão do prestígio, e mesmo influência, junto ao titular do comando sobre o aparelho de coação organizada, em real oposição a valores como a transparência da gestão pública, assegurada pela publicidade, e a igualdade dos indivíduos perante a lei .

A grande questão que se põe, no seio do constitucionalismo ocidental, é justamente o afastamento, em relação às funções do Estado, dos critérios personalísticos, de maximização do interesse particular do indivíduo que esteja investido na condição de autoridade e de seus próximos, é nortear o respectivo desempenho, mesmo as providências de caráter mais individualizado, pelo interesse público, o interesse na realização objetiva dos fins a que se propõe a ordem jurídica.

A visão do fomento enquanto meio de apropriação privada do patrimônio público, espécie do género “privatização”, não deixa de ser, em face dos valores que informam o constitucionalismo “ocidental” um verdadeiro desvirtuamento de sua finalidade precípua, que é o atingimento de fins de interesse público, que transcendem o interesse de indivíduos, sem aniquilar o caráter de direito subjetivo inerente ao desempenho da atividade económica.

Daí se entende por que na Lei de Improbidade Administrativa de 1992 vem sancionada a conduta consistente em alcançar ao particular benefício fiscal ou financeiro sem que observadas as disposições legais pertinentes: se há um campo em que a forma é da essência do ato, é precisamente este.

Considerados os valores que informam o constitucionalismo “ocidental”, em particular a inadmissibilidade da visão da atuação do Estado em prol de quem quer que seja como simples manifestação de afeto de quem esteja no exercício da função pública, constitui verdadeira distorção o emprego do fomento como forma de favorecimento e de aprofundamento de desequilíbrios no meio social.

A significação, pois, do fomento mais conforme aos valores que se adoptam em países cujo constitucionalismo se filie à visão “ocidental” não é a que o trata como manifestação do fenómeno da “privatização” do público, mas, antes, de “publicização” do privado, no sentido do engajamento do interesse privado na consecução do interesse público.

Ricardo Antonio Lucas Camargo

Associado do IARGS, professor da Faculdade de Direito da UFRGS e professor visitante da Università Degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Procurador do Estado do RS

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