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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Breve comentário sobre reflexos da pandemia no Direito



Artigo do Norberto da Costa Caruso Mac Donald, integrante do Conselho Superior do IARGS

Tema: Breve comentário sobre reflexos da pandemia no Direito


1. A complexidade e a abrangência do tema proposto impõem que sua apreciação, numa rápida síntese, se limite a alguns aspectos gerais, sem que se ouse apontar soluções ou pretender originalidade. 

2. O cientista político Yascha Mounk [1] observa: “Existem décadas intermináveis, em que a história parece se arrastar. E existem também anos breves em que tudo muda abruptamente. É o tipo de momento em que vivemos hoje. “ Mais adiante, prossegue: “Até pouco tempo atrás, a maioria de nós vivia em uma época normal. Agora, em comparação, estamos ingressando em uma época extraordinária.” 

3. Sendo essa manifestação anterior à pandemia que ora assombra a humanidade, cabe indagar: o que esperar de um futuro próximo afetado por suas consequências? Será suficiente classificá-lo apenas como uma época extraordinária, análoga à em que vivíamos? 

4. A elaboração de uma resposta pressupõe, primeiramente, esboçar um quadro da época pré-pandemia sob alguns enfoques relevantes por seu reflexo no Direito e por serem ilustrativos das mudanças que vêm ocorrendo, suscetíveis de particularizar a época mencionada como “extraordinária”. 

5. Para esse efeito, pela importância e amplitude de seu alcance, destaca-se a globalização, que tem entre suas características, como salienta Francesco Galgano [2], a crescente “transnacionalidade” do comércio e das finanças, bem como as dimensões transnacionais assumidas pela economia industrial. Considerando a evolução histórica da empresa, no estágio atual todas as suas funções clássicas se internacionalizam. Não são só as mercadorias que circulam além dos confins nacionais; a própria organização produtiva e distributiva se desloca e se ramifica em âmbito internacional. 

6. Certamente, a globalização, em que sobressaem aspectos econômicos, se reflete no Direito, quer se sustente que o “modo de produção capitalista” gera a ordem jurídico-política de que necessita a cada estágio de seu autodesenvolvimento, quer se entenda, como Pierre Dardot e Christian Laval [3], que longe de pertencer a uma “superestrutura” condenada a exprimir ou obstruir o econômico, o jurídico pertence de imediato às relações de produção, na medida em que molda o econômico a partir de dentro; em abono desse entendimento, os referidos autores destacam o “ordoliberalismo”, que se impôs na República Federal da Alemanha após a guerra: uma realidade construída (“projeto construtivista”), que requer a intervenção ativa do Estado, assim como a instauração de um sistema de Direito específico. Enfim, a autonomia do Direito contém a possibilidade de interação entre os fatos jurídicos e econômicos. 

7. Perquire-se como numa sociedade globalizada podem encontrar adequada proteção a liberdade e os direitos humanos; como se pode alcançar o devido respeito pela soberania dos Estados; como se pode transferir ao governo de uma sociedade pós-nacional os princípios democráticos surgidos historicamente nos âmbitos nacionais; que mudanças se devem produzir na organização jurídica dos mercados; como assegurar uma tutela eficaz a consumidores e trabalhadores além das estruturas do Estado e de uma organização territorial. 

Sugere-se que a maneira de neutralizar o “déficit democrático” da globalização seria através de uma entidade transnacional – não foi Kant quem, mais de duzentos anos atrás, viu a necessidade de ordem legal transnacional baseada na ascensão da sociedade global? Entretanto, a efetivação de um Estado-universal, com uma cidadania e um direito comuns a todos, dadas as dificuldades até o presente não superadas, ainda se apresenta como uma utopia. 

De fato, hoje o Estado encontra-se expropriado de uma parcela de seu antigo poder, o qual foi capturado por forças supra-estatais (globais) que operam num espaço politicamente incontrolável. Abriu-se uma profunda contradição entre as dimensões transnacionais das grandes empresas e o caráter nacional dos sistemas jurídicos em que elas atuam: de que vale o poder de tributar dos Estados se os contribuintes são empresas que se subtraem à imposição fiscal colocando em outro país a holding em que se realizam os lucros sujeitos a tributação? E de que vale a imposição de contribuições previdenciárias, se as empresas transladam para fora do território do Estado as controladas que administram os estabelecimentos industriais? Essas questões foram formuladas por Francesco Galgano. 

Malgrado suscitar problemas, a globalização se mostra irreversível, sobretudo se encarada como decorrência das novas tecnologias de comunicação, que levaram a remover as barreiras físicas do espaço e transformar os habitantes da Terra em membros de uma aldeia global. O que falta é uma regulamentação adequada a assegurar a coexistência harmônica entre globalização e Estados -nações, que, embora com sua concepção clássica alterada, continuam como centros de autoridade 

8. Outro tema que tem sido objeto de preocupação em várias áreas, com consideráveis reflexos na esfera do Direito, diz respeito a consequências da terceira revolução industrial da microeletrônica, na qual uma máquina guiada por um computador substitui o trabalho do homem. Sustenta-se que a sociedade mundial do trabalho alcança seu limite histórico, em razão de que a desvinculação, cada vez maior, na sequência dessa revolução, da produção de riqueza do uso do trabalho humano, – numa escala que há poucas décadas só era imaginada como ficção científica – provoca liberação de energia humana, e aqui liberação significa também mal-estar ou desocupação. 

O nexo entre sociedade eletrônica e diminuição da ocupação na indústria resta evidente. 

9. As considerações apresentadas afiguram-se suficientes para confortar a observação inicial de que nossa época pode ser caracterizada como “extraordinária” em virtude da importância e do ritmo das mudanças que se realizam. Porém, tendo em conta que essas ocorrem há algum tempo, tal particularidade, é possível dizer, se “normalizou”. Mas, sobreveio a pandemia, cuja dimensão dos efeitos seria prematuro adiantar; o que não impede constatar alguns fatos que já vêm acarretando consequências. 

10. Com esse intuito, cabe, desde logo, destacar o papel primordial desempenhado pelos Estados nacionais, em seus vários níveis de poder, em que pese o declínio do governo público da economia. Como em crises anteriores, são eles que – embora em graus diversos de preocupação e eficácia – coordenam as providências tendentes a enfrentar a pandemia. A ação dos Estados tem se mostrado insubstituível sob os enfoques sanitário e econômico. 

11. Embora ainda não se tenha estabelecido um acordo internacional de cooperação e solidariedade para lutar contra o vírus, vem se reforçando a relevância do relacionamento harmônico entre os Estados nacionais e entre estes e entidades nacionais e supranacionais, públicas e privadas, na busca de medicamentos para combater a doença e de uma vacina para debelá-la. Noticia-se a tentativa da comunidade internacional de fechar um acordo antes que vacina, ora em pesquisa, chegue ao mercado; outrossim, que o correspondente projeto tem recebido crítica centrada na preservação da patente, sem qualquer indicação de flexibilização ou mesmo de suspensão. Importante orientação de caráter geral vem sendo ditada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Que eficácia teriam regulamentos exclusivamente nacionais em questões que extrapolam as fronteiras dos Estados, como a preservação do planeta e a saúde de seus habitantes? Conforme a lição de Yascha Mounk, “ a finalidade de um acordo internacional é coordenar as ações de diferentes países a fim de estabelecer expectativas estáveis e capacitá-los a atingir um objetivo comum. Assim, a perda resultante de controle nacional resultante da sujeição a acordos internacionais não é um defeito do sistema de acordos internacionais; é sua característica principal.” 

12. Outra questão, talvez a que mais se tenha acentuado com a pandemia, diz respeito à crescente desigualdade ligada à progressiva e intensificada concentração de renda. 

Aqui, não se trata de uma suposição, mas de um fato comprovado por pesquisas e estatísticas, enfatizado por economistas e cientistas sociais que, inclusive, o apontam como um dos mais destacados fatores da desesperança em relação ao futuro. Variam as soluções aventadas para eliminar, ou, ao menos, minimizar esse problema; mas não se contesta a sua existência. 

É verdade que, no momento atual, assiste-se ao recrudescimento de movimentos de solidariedade liderados por entidades da sociedade civil. O que se espera é que tal solidariedade, tão necessária agora, se estenda a um decisivo apoio a políticas públicas que visem a enfrentar as desigualdades. 

Acaso seria quimérico desejar que, num futuro próximo, a solidariedade pudesse, em momentos de crise, se concentrar mais num apoio moral por estarem atendidas as necessidades materiais básicas da população em geral? 

Numa passagem instigante, John Rawls [4] adverte: “A distribuição natural [de talentos] não é justa nem injusta; tampouco é injusto que as pessoas nasçam em uma determinada posição na sociedade. Esses fatos são simplesmente naturais. O que é justo ou injusto é a maneira como as instituições lidam com esses fatos.” 

13. Neste passo, oportuno lembrar uma colocação de Zygmunt Bauman [5] que, em suma, afirma que a “Grande Guerra”(1914 – 1918) solapou a confiança que, a partir do terremoto de Lisboa (1755), havia sido, por quase dois séculos, investida na substituição da aleatoriedade cega da natureza por uma ordem construída por seres humanos, guiada pela razão; esta, todavia, não se mostrou capaz de superar a imprevisibilidade de que a natureza fora acusada. No presente, após um período de acelerado desenvolvimento científico e tecnológico, somos surpreendidos por uma catástrofe imprevista e global no sentido de que atinge a todos e de se estender a várias esferas da vida humana. Enquanto não dispusermos dos meios para vencer a pandemia, continuamos todos vulneráveis. 

Variam, porém, as condições materiais para enfrentar o mal. Se a superveniência de situações excepcionais permanece, não raro, imprevisível, previsível se mostra que a adoção preventiva de medidas tendentes a reduzir as desigualdades seriam eficazes. 

14. Enfim, o exame das atuais circunstâncias demonstra que a época pós-pandemia não será passível de ser classificada apenas como “extraordinária” à semelhança daquela anterior à doença. Porém, como o momento presente, será também uma época “excepcional” ou “atípica”: exigirá medidas de maior alcance, cuja urgência está sendo evidenciada. Espera-se que a “atipicidade” seja caracterizada não só pela quantidade e excepcionalidade de medidas tomadas pelo poder público, mas que essas, assim como os comportamentos individuais e coletivos, reflitam lições extraídas da pandemia. 

É justamente em tempos como os atuais que se intensifica a necessidade de uma forte e decisiva atuação na esfera jurídica. 


Referências bibliográficas 

[1] Yascha Mounk – O povo contra a democracia – Companhia das Letras, São Paulo, 2018 

[2] Francesco Galgano – La globalizzazione nello specchio del diritto – Ed. Il Mulino, Bolonha, 2005 

[3] Pierre Dardot e Christian Laval – A nova razão do mundo – Boitempo Editorial, São Paulo, 2016 

[4] John Rawls – Uma teoria da justiça – apud Michael J. Sandel – Justiça – Civilização Brasileira –Rio   

de Janeiro, 2014 

[5] Zygmunt Bauman – A arte de vida – Jorge Zahar Ed., 2009 

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