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terça-feira, 27 de outubro de 2020

A virtualização do Judiciário

Artigo da Dra Roberta Schaun, associada do IARGS e Conselheira Regional da OAB/RS
Tema: A virtualização do Judiciário

As sessões de julgamento de processos criminais com sustentação oral gravada baseadas no ato nº 11/2020-1ª VP


Devido a atual situação global que se instalou em decorrência da pandemia da COVID-19, estamos vivenciando novos tempos e buscamos adequações para o melhor funcionamento da Justiça. Entretanto, tais medidas precisam ser implantadas com máxima cautela para que não resultem em atos violadores de princípios constitucionais e regras processuais, especialmente quando tratamos do processo penal. 

No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de alcançar tais adequações, foram criados, por exemplo, os Atos nº 03 e 11 da Primeira Vice-Presidência que regulam as sessões virtuais de julgamento perante a Corte nesta época de pandemia. 

De início, o Ato nº 03 autorizava a realização de sessões virtuais por videoconferência, ou seja, ao vivo, com o direito de sustentação oral, garantido a ambas as partes. Nos casos de sessão virtual sem videoconferência, as partes poderiam fazer pedido para retirar o processo de pauta, sem prejuízos. 

Ocorre que, posteriormente, o Ato nº 11, que disciplina especificamente o exercício da sustentação oral nas sessões de julgamento, possibilitou uma nova modalidade de sustentação oral, qual seja, sustentação oral pré-gravada, em formato de áudio ou áudio e vídeo, disponibilizado por meio de link que conduzirá ao arquivo da gravação. 

Pois bem, a partir do Ato nº 11, nas sessões virtuais sem videoconferência, o que era para ser uma possibilidade, passou a ser obrigatoriedade: caso o advogado tenha interesse em fazer sustentação oral, esta deverá ser gravada e enviada previamente a sessão, vez que alguns julgadores não retiram mais os processos de pauta (como prevê Ato nº 3, ainda em vigor). O argumento que costuma constar nos despachos para defender essa nova modalidade de sustentação oral refere que o advogado poderá exercer a defesa na sua amplitude, não ocorrendo violação ao art 5º, LV da CF, não havendo necessidade de presença física ou videoconferência para atender, com correção, ao princípio da ampla defesa, inexistindo, na modalidade eleita, qualquer cerceamento, nenhum impedimento de atuação dos profissionais do Direito, a eles sendo regiamente resguardado o direito de manifestação oral. 

A realização de sustentação oral, quando do julgamento perante os Tribunais, é uma prerrogativa, um direito fundamental para o bom exercício da advocacia. Além de possibilitar a melhor apresentação da causa e das teses defensivas aos julgadores, permite que possa ser usada, pela ordem, a palavra ou insurgir-se contra manifesto desrespeito a norma vigente, prerrogativas inerentes à profissão, nos termos do art. 7º, X e XI, EAOAB, por exemplo. Tais prerrogativas encontram-se seriamente fragilizadas por essa nova modalidade de sustentação oral, não se podendo olvidar o prejuízo às garantias fundamentais do contraditório e da ampla defesa: o envio de uma sustentação oral previamente preparada, sem a possibilidade de insurgir-se durante o julgamento é pouco efetiva para a defesa de sua causa. Como os advogados usarão da palavra, pela ordem, em sustentações orais pré-gravadas? 

A respeito do tema, é preciso se destacar a Resolução nº. 329/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em especial o §1º do art. 4º, o art. 20 e o art. 23. A norma autorizou a realização de sessões de forma não presencial, desde que fossem resguardados, ao máximo, os princípios constitucionais inerentes ao devido processo legal e a garantia do direito das partes. Quanto aos atos processuais, estes deverão ter a máxima equivalência com os atos realizados presencialmente ou em meio físico. As sessões de julgamento eletrônicas poderão ser realizadas a critério do órgão julgador, por meio de videoconferência, facultando-se a realização de sustentação oral, asseguradas a publicidade dos atos e demais prerrogativas processuais. Desse modo, no tocante às sessões de julgamento perante os Tribunais, existe a salvaguarda do exercício das sustentações orais, garantidas as prerrogativas aqui já mencionadas. 

Assim, ainda que se preveja a possibilidade de sustentação oral por meio de gravação, como o faz o Ato nº 11 do TJRS, a eleição dessa modalidade deve ser faculdade do advogado, exatamente como prevê o art. 2º da norma, e não uma obrigatoriedade, como tem ocorrido em casos de sessões virtuais sem videoconferência, quando o advogado entende ser importante a sustentação oral e o julgador se recusa a tirar o processo da pauta da sessão. Essa situação é preocupante, pois o envio de áudio ou vídeo não garante a efetiva e ampla participação do causídico na postulação de decisão favorável ao seu constituinte e no convencimento do julgador. 

Assim, vez que a possibilidade de envio de sustentação oral gravada tornou-se obrigatoriedade, o Ato nº 11 do TJRS vai de encontro à legislação vigente hierarquicamente superior, tanto de natureza constitucional quanto ordinária, além de afrontar as normas oriundas do próprio CNJ, órgão competente para regular a matéria. 

Nesses casos, percebe-se, sim, uma restrição ao livre exercício profissional da advocacia que não afeta somente a classe profissional, mas principalmente o direito de defesa do cidadão, bem como os direitos fundamentais de toda sociedade. 

O atual estado de pandemia da Covid-19 no qual estamos vivendo implicou a aceleração de mudanças nas formas de prestação à Justiça que iriam ocorrer de forma gradual. Contudo, tais mudanças não podem atropelar os mais básicos direitos e garantias fundamentais, tanto das partes quanto dos profissionais envolvidos.

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