Artigo da Dra Aline Rùbenich, advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões e Coordenadora da Comissão de Proteção dos Animais de Estimação do IBDFAM/RS
Tema: Animais de estimação em tempos de pandemia
Com o surgimento da pandemia do novo Coronavírus, uma das principais recomendações dos órgãos de saúde é de se manter em casa. Com esse novo cenário, muitas pessoas, evitando a solidão, buscaram nos pets uma presença constante e aliada no combate à solidão. Alguns já possuíam esse amor de “pelos”; outros foram em busca de um peludo para passar essa fase que mudou a vida de todos no mundo.
Inicialmente, necessitamos levar em conta que “o contexto da família contemporânea mudou e que os operadores do direito e das áreas interdisciplinares devem ter um novo olhar para as facetas da família, tendo em vista que se alterou os papéis das pessoas nas famílias”, como aponta Delma Silveira Ibias[1]. Esse é um exemplo que podemos citar no sentido de que “A mulher, em virtude do seu crescimento no mercado de trabalho, fez com que a gestação fosse postergada e como os filhos ficaram para um segundo momento, em muitas famílias, os filhos são de quatro patas e esses recebem tanto carinho quanto a um filho de duas pernas, conforme referido por Diego Oliveira da Silveira em um Workshop sobre alimentos, guarda e alienação parental proferido para os Defensores Públicos do Estado da Bahia”[2].
Assim, a família moderna é diferente do que em tempos mais remotos e que hoje temos a valorização dos laços afetivos, trabalhando-se com várias concepções de família e que se deve ter um olhar diferenciado para os novos arranjos familiares, sendo que a família formada com animais de estimação é uma realidade, cuja situação foi amplificada pelo crescimento dos pets nas casas das famílias durante a pandemia[3].
Cabe referir que, em 2013, foi realizada uma pesquisa pelo IBGE e que essa autarquia federal responsável pelo CENSO nacional constatou que as famílias brasileiras possuíam 52 milhões de cachorros e 22 milhões de gatos, sendo que essa pesquisa mostrou que havia mais cachorros de estimação do que filhos nos lares do Brasil, conforme noticiado pelo Portal da Rede Globo - G1[4].
Assim, chegamos ao atual cenário, onde visualizamos um crescente número de adoções de pets durante os meses mais rígidos de quarentena. Esses dados foram divulgados pela CNN Brasil e mostram que, em abril de 2020, esse aumento chegou a 400%[5].
No sentido de que os pets integram a família, nós temos uma importante decisão que repercutiu bastante na mídia, onde o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, em um incidente de competência, reconheceu que é do juízo da Vara de Família a competência material para resolver conflitos envolvendo a custódia de animais de estimação adquiridos ou adotados pelas partes no curso da união por elas vivida.
Ainda, igualmente recente, verificamos a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na qual a ex-mulher conquistou o direito de conviver com um cachorro, atualmente sob tutela do ex-marido. O casal manteve a relação por quatro anos, período em que a autora da ação viveu junto ao animal. Depois da separação, ela quis manter o contato com o pet, sendo negado pelo companheiro. Essa questão gerou a interposição de um recurso perante a 8ª Câmara Cível, a qual permitiu essa convivência com o animal de estimação, utilizando os parâmetros da guarda para regular essa convivência, pois o pet não pode ter natureza jurídica de coisa, embora, por lei, os animais sejam tidos como semoventes no art. 82 do Código Civil Brasileiro[6].
No sentido de que os pets não são coisas, podemos citar a recente decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que em uma ação de divórcio determinou que o ex-marido pague à ex-esposa o valor de R$ 200 mensais de alimentos para o custeio das despesas de seis cães. Os animais foram adquiridos durante a união e o casal desenvolveu uma forte relação afetiva com eles. Essa decisão reconhece que o compromisso firmado não pode ser afastado com a separação e que essa relação gera o dever de pagar alimentos à ex-esposa, conforme noticiado no site do IBDFAM[7].
Espera-se que, nos próximos anos, haja um aprofundamento dos estudos e que ocorra com a modernização do tema, sensibilizando o Estado para que políticas públicas sejam adotadas para evitar o abandono dos animais e que a legislação seja modificada para proteger os pets e para regular os direitos e as obrigações no âmbito do Direito de Família e das Sucessões. Assim, o tema do bem-estar do animal no âmbito da família também estará em voga e alinhada ao Direito Ambiental.
Cabe referir que a família mudou e que o olhar dos profissionais que atuam nos litígios familiares deve mudar também, pois regras engessadas ou que não espelham a realidade não devem ser aplicadas.Não há qualquer sombra de dúvida de que o crescimento das aquisições e das adoções de pets no período da pandemia da COVID-19 mostra que as famílias contemporâneas não visualizam seus animais de estimação como um bem móvel e que não deve ter o regramento jurídico de uma coisa. Muito pelo contrário, hoje temos os filhos de 04 patas que suprem a necessidade dos casais de terem filhos de 02 pernas ou, até mesmo, os filhos de 04 patas contribuem para a felicidade dos filhos de 02 pernas e para a família de maneira geral, não podendo os mesmos ser tratados como uma coisa[8].
[1] IBIAS, Delma Silveira. Famílias Simultâneas e Efeitos Patrimoniais. In: SOUZA, Ivone Maria Candido
Coelho de (Coordenadora). Família Contemporânea: Uma Visão Interdisciplinar. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IBDFAM/RS: Letra&Vida, 2011. p. 196/197.
[2] SILVEIRA, Diego Oliveira da. Workshop: alimentos, guarda e alienação parental. Palestra proferida na Escola da Defensoria Pública do Estado da Bahia no dia 24/08/2018, sendo disponibilizada no Canal da Defensoria Pública do Estado da Bahia, através do link do YouTube: live.defensoria.ba.def.br e acesso em 19/09/2018.
[3] CAPRA, Natália. Guarda de animais de estimação. In: ROSA, Conrado Paulino da; THOMÉ, Liane Maria Busnello. O direito no lado esquerdo do peito: ensaios sobre Direito de Família e Sucessões. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2014, p. 242/246.
[4] G1 - Portal da Rede Globo. Brasileiros têm 52 milhões de cães e 22 milhões de gato, aponta IBGE.
Notícia veiculada em 02/06/2015. Disponível em: http://g1.globo.com/natureza/noticia/2015/06/brasileirostem- 52-milhoes-de-caes-e-22-milhoes-de-gatos-aponta-ibge.html e acesso em 29/09/2018.
[5] Adoção de cães e gatos crescem durante a quarentena. CNN Brasil. Online, 29.07.2020. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/07/29/adocao-de-caes-e-gatos-cresce-durante-a-quarentena > e acesso em 20.12.2020.
[6] TJRS. Notícia sobre o direito à convivência com cachorro sob a tutela do ex-marido. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8270/Mulher+tem+direito+a+conviver+com+cachorro+sob+tutela+do+ex-marido%2C+decide+TJRS e acesso em 09/04/2021.
[7] Notícia sobre o dever de pagar alimentos na dissolução de uma união estável. IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8320/TJMG%3A+Ap%C3%B3s+div%C3%B3rcio%2C+homem+deve+pagar+metade+das+despesas+com+c%C3%A3es+%C3%A0+ex-mulher e acesso em 09/04/2021.
[8] RÜBENICH, Aline. Filhos de quatro patas: a possibilidade jurídica da custódia compartilhada de animais de estimação. In.: ROSA, Conrado Paulino da (Coordenador). Dialogo de Família e Sucessões. Obra do Curso de Pós-Graduação em Direito de Família e Sucessões, 2ª edição. Porto Alegre: FMP, 2019.
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