Artigo da associada do IARGS, Drª Laura Affonso da Costa Levy,
Mestre em Bioética UMSA/AR; Especialista em Bioética pela PUC/RS
Tema: Bioética e Esporte: uma análise da autonomia do atleta de alta performance
A preocupação ética com as práticas biológicas é antiga, remontando à origem da Medicina, com tratamento médico-científico.
Diego Gracia afirma que a Bioética surgiu por absoluta necessidade, a partir dos anos de 1950, consequência da revolução científica e técnica ocorrida nas ciências biológicas e médicas.[1]
O vocábulo criado pelo filósofo alemão Fritz Jahr, pela junção de duas palavras gregas – bios, vida e ethos, comportamento – em seu artigo Bioethik, seria uma disciplina acadêmica, um princípio e uma virtude que, como tal, imporia obrigações morais em relação a todos os seres vivos.
A difusão do tema, entretanto, se deu através de Van Rensselaer Potter, com a obra Bioethic: Bridge to the Future, publicada em 1971, propondo a construção de uma ponte, capaz de mediar as relações entre as Ciências e as Humanidades.
Assim, o termo Bioética adentrou em nosso vocabulário e nas práticas científicas, passando a ser obrigatório os comitês de ética em pesquisa, nas instituições de ensino e em institutos médicos, quando as pesquisas envolverem seres humanos[2], somado às questões de ética ecológica, com a relação entre o homem e o meio ambiente.
Bioética, portanto, que nasceu como a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas dos profissionais da saúde e da Biologia, avaliando suas implicações na sociedade e relações entre os homens e entre esses e outros seres vivos, ampliou sua esfera e abrange, hoje, dinâmicas que congregam estudos éticos na sua dimensão complexa[3], ultrapassando uma visão antropocêntrica, reducionista e linear.
Esporte, de outra sorte, é toda atividade física competitiva com regras e objetivos bem definidos. Os esportes podem ser praticados de forma individual ou coletiva, profissionalmente, de maneira recreativa ou para a melhoria da saúde. Os praticantes de esportes são chamados de esportistas, desportistas ou atletas.
Para o atleta de alta performance, o condicionamento físico é determinante para o sucesso ou fracasso desse profissional. Ainda, há que se ter em mente que os atletas – pessoas que buscam a realização pessoal e profissional no esporte – iniciam a carreia em tenra idade, haja vista que a sua formação se dá ainda quando na idade infantil.
Tal fato se mostra importante pelo fato de que, as crianças, por si só, são seres vulneráveis, eis que estão na fase de desenvolvimento físico, emocional, social e intelectual. Assim, já merecem uma proteção e um olhar diferenciado e cauteloso, recebedor, inclusive, de Proteção Integral pelas normas internacionais e internas do país.
Dentro desse contexto vale destacar os aportes financeiros que estão envolvidos em muitas modalidades esportivas, somado aos investimentos tecnológicos para melhoramento da performance e aprimoramento do corpo humano que, de igual forma, são causas de pressão externa não só para os jovens, mas sobre todos os atletas.
A excelência pela perfeição e obstinação pelo aprimoramento físico do corpo é uma cultura que atravessou séculos, incorporada ao esporte, assim como a longínqua trajetória dos Jogos Olímpicos.
De lá pra cá, além do treinamento exaustivo surgiram inúmeros avanços na ciência e na tecnologia capazes de modificar completamente a dinâmica do esporte.
Não se desprezam os benefícios gerados através dos avanços das pesquisas e das tecnologias, que trabalham para atingir melhores resultados, com redução de esforço. Porém, a linha tênue entre os benefícios e a objetificação do corpo e do atleta é o espaço de atuação da Bioética.
As engenharias genéticas, ou mesmo as tecnologias de suplementos alimentares e/ou itens de vestuários não podem colocar a saúde em segundo plano. Não há que se permitir que o corpo do atleta se torne campo de experimentação fisiológica, principalmente de pesquisa biomédica e testes de produtos para consumo (como roupas e acessórios, p ex.).
Esse é o exato momento em que se deve observar as possíveis relações de poder sobre o atleta, haja vista que a medicina do esporte deve ser utilizada para melhora na performance através da ciência do esporte, das substâncias químicas e das tecnologias genéticas para o aprimoramento do atleta e não para manipulação genética, essa caracterizada como dooping genético[4].
Outro aspecto é a formação dos super atletas e o surgimento da eugenia[5] no esporte, ante a tamanha manipulação genética e “possibilidade” da criação de atletas desde sua concepção in vitro.
Ainda, o poder econômico de determinadas nações e patrocinadores, que aportam altos valores nas modalidades, são pontos de obstáculos para garantia da acessibilidade tecnológica, em igualdade de condições, haja vista a ausência de equiparação de investimentos no esporte. Fato que, por si só, gera um descompasso e necessária intervenção de discussões éticas que possibilitem a aproximação entre as nações e os atletas.
A ética tem como sentido a condução da vida e tem seu propósito maior na conquista da felicidade. Já o esporte tem seu sentido na saúde e bem-estar, e, para o seu propósito, a formação do sujeito ético.
Olhando dessa forma, ética e esporte são extremamente ligados. O esporte é realmente um potente construtor do caminho ético.
O Brasil ratificou a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte em 18 de dezembro de 2007, integrando-se com isso ao seleto grupo de 138 países unidos em um esforço supranacional para promover o fair play – o jogo limpo e justo – e o direito a competições transparentes e honestas.
De igual modo, as balizas éticas à medicina do esporte não podem se afastar de que a atividade médica é pautada por valores morais, como confidencialidade, confiança e cuidado, somado aos princípios como respeito à autonomia, não maleficiência e beneficiência.
Referências
GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: São Camilo; Loyola, 2010.
MORAN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo, 1991.
SILVA, Tatiana Tavares. Questões éticas na prática da medicina do esporte na contemporaneidade. Disponível em https://www.scielo.br/j/bioet/a/TsZhY5GkgKtYM5KRMNj4K3R/?lang=pt. Acesso em 09 de junho de 2021.
[1] GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: São Camilo; Loyola, 2010, p. 472.
[2] A obrigatoriedade, no Brasil, dos comitês de ética em pesquisa foi instituída pela resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, revogada pela Resolução CNS n. 466, de 12 de dezembro de 2012.
[3] Em meados do século XX as ciências da terra, a ecologia, a cosmologia e outras formas de conhecimento começam a buscar o diálogo pluridisciplinar. A partir de então, aquela crise que o paradigma disjuntor-redutor havia sofrido com a emergência da física subatômica (teoria da relatividade, princípio de incerteza, etc) e com a emergência da fenomenologia nas primeiras décadas do século XX é reforçada pelos diálogos multi, inter e transdisicplinares. É nesse contexto da história da ciência que emerge o pensamento complexo ou paradigma da complexidade, que visa associar sem fundir, distinguindo sem separar as diversas disciplinas e formas de ciência, assim como as diversas formas de conhecimento e inclusive outras instâncias da realidade, como Estado, Mercado e Sociedade Civil. O pensamento complexo não se limita ao âmbito acadêmico: transborda para os diversos setores das sociedades. E com isso questiona todas as formas de pensamento unilateral, dogmático, unilateralmente quantitativo ou instrumental. A incerteza faz parte do paradigma da complexidade, como uma abertura de horizontes, e não como um princípio que imobiliza o pensamento. A complexidade e suas implicações são as bases do denominado pensamento complexo de Edgar Morin, que vê o mundo como um todo indissociável e propõe uma abordagem multidisciplinar e multirreferenciada para a construção do conhecimento. A proposta da complexidade é a abordagem transdisciplinar dos fenômenos, e a mudança de paradigma abandonando o reducionismo que tem pautado a investigação científica em todos os campos, e dando lugar à criatividade e ao caos. In: MORAN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo, 1991:17/19.
[4] Dooping genético é a inserção de genes no DNA que poderiam aumentar força e resistência sem deixar pistas químicas na corrente sanguínea.
[5] A eugenia, também chamada de eugenismo, consiste em uma série de crenças e práticas cujo objetivo é o de melhorar a qualidade genética da população. Uma das justificativas para a existência da eugenia é a de que as raças humanas consideradas superiores prevalecem no ambiente de maneira mais adequada.
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