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quarta-feira, 28 de junho de 2023

Artigo- Direito à Saúde Mental

 

Artigo da Drª Mariana Diefenthaler, associada do IARGS, advogada, 
presidente da Comissão do Direito à Saúde da OAB/RS
Tema: Direito à Saúde Mental


Diuturnamente, observamos a politização que o eixo temático da Saúde revela nas esferas públicas, privadas, no terceiro setor e na sociedade civil organizada em geral com dificuldades de regulação segura e padronização de procedimentos e informações acerca das repercussões jurídicas de um mundo hiperconectado. Diariamente, somos admoestados por inúmeras notícias que impactam os espaços e que acarretam numa infodemia que se multiplica de forma muito acelerada em curto período de tempo devido a um evento específico.

Notadamente, a repercussão civil desse mundo V.U.C.A (volátil, incerto, complexo e ambíguo) e B.A.N.I. (frágil, ansioso, não-linear e incompreensível) impacta o mundo do Direito em diversas áreas dentro e fora da Organização Judiciária Brasileira: Justiça do Trabalho, Justiça Comum, Justiça Militar, Justiça Federal e Justiça Eleitoral, além do Tribunal do Juris e espaços de Meios Adequados de Solução de Conflitos, como a Mediação, Conciliação e Arbitragem. São inúmeros os reflexos e as interfaces das relações individuais (eu e eu mesmo) e coletivas (eu no mundo).

A Teoria Geral do Estado sistematiza conhecimentos jurídicos, filosóficos, sociológicos, políticos, históricos, geográficos, antropológicos, econômicos e psicológicos e corresponde a parte geral do Direito Constitucional, disciplina obrigatória dos Cursos de Direito e afins. O caráter multidisciplinar da vida humana convida o leitor a acolher a política e a ciência política como algo secular. O século delimita um período dentro de uma linha considerada infinita em relação ao passado e também ao futuro. Trata-se de uma imagem baseada na ideia de continuidade do tempo, dentro do qual o momento presente marca apenas o ponto de vista escrito por nós. O período de cem anos, no mundo cristão, a contagem do nascimento de Jesus como ponto de partida evidencia o caráter aleatório desse tempo, diferente da contagem judaica, islâmica, o que denota a perspectiva cultural da expressão. Logo, as normas de orientação ético-culturais, igualmente, coordenam o ser no mundo e o seu tempo, como bem leciona o professor e filósofo Georg Hans Flinkinger.

A aplicação do termo século expressa a pretensão do homem de se apoderar do tempo e de se tornar seu construtor como criador de um mundo seu. A apropriação do tempo pelo homem é fenômeno importante para a análise do mundo moderno. A secularização da visão teológica do tempo causa um anseio existencial absurdo. Não por acaso a sociedade moderna ganhou o status de uma sociedade de consumo e de trabalho que se submete cada vez mais à lógica temporal, que mede o valor da pessoa e sua biografia social pela produtividade econômica. A magia do tempo nas variadas disciplinas poderia ser aqui narrada pela racionalidade instrumental, mas isso seria um abuso do tempo disponível do leitor, que poderia abandonar o texto nessa ampulheta alquímica.

A secularização traz a raiz ambígua do tempo vista sob a ótica da teologia, sociologia e psicanálise. Assim, a ciência política transcende e desencadeia na revisão dos conceitos de política, soberania, povo, estado-nação e ganha um significado de nova constelação política cheio de novos atores e protagonistas nesse Mindset de pós-verdade com apelos às emoções e às crenças pessoais das versões e fragmentos de memórias com vieses cognitivos que temperam as narrativas, fatos e verdades de cada um.

Qualquer mudança, por menor que seja, pode causar a entropia do sistema como um todo. Essa desordem é que harmoniza os elementos novos e autoriza o novo dispositivo de flexibilizar o sistema, algo autopoiético tão bem enfrentado por Humberto Maturana e Francisco Varela.

Nessa esteira, em tese, a tripartição dos poderes segue sendo soberana na nossa república brasileira com seus poderes políticos e protagonistas para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, de acordo com a Constituição Federal.

Qual a relação da Saúde Mental com a política? Consoante a fonte https://reubrasil.jor.br/caso-damiao-ximenes-lopes/ancONE, o caso de Damião Ximenes Lopes datado de 1999, é emblemático exemplo de processo estrutural, cultural e de jurisdição em caso de tratamento ao Transtorno Mental. O fato de Damião ter morrido por dito maus tratos em estabelecimento de saúde no Brasil que acarretou em denúncia à Comissão Interamericana de Direito Humanos e ulterior sentença da Corte desencadeou em uma série de desdobramentos jurídicos e mudança de cultura que o Estado brasileiro teve que adotar após essa decisão de enorme interesse social.

Diria que um dos primeiros desdobramentos da sentença da corte Internacional de Direitos Humanos que condenou o Brasil, entre outros, a adotar novo manejo aos portadores de Transtornos Mentais é a Lei 10.216 de 2001, Lei da Reforma Psiquiátrica, que ainda divide opiniões. O movimento da reforma psiquiátrica implementou uma política pública complexa e inovadora da política introduzida por Philipe Pinel que instituiu os tratamentos humanitários e cuidados dos doentes em hospitais, pois classicamente, a concepção era mágico-religioso dos tratamentos dados aos doentes mentais.

Com a entrada em vigor da Lei nº. 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, inspirada na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgado pelo Brasil em 2009, a capacidade da pessoa natural (física) sofreu significativa e importante alteração. Agora, são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 anos (CC, art. 3º). Com a nova disciplina legal, foi alterada a situação jurídica dos enfermos e doentes mentais e/ou deficientes. A nova capacidade civil plena dos mesmos se institui.

É considerada pessoa com deficiência, segundo a Lei n°. 13.146/2015, aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 2º).

Assim, a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Por sua vez, a pessoa com deficiência não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, entretanto, quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela (Lei 13.146/201, art. 84). Assim, a definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. O objetivo do legislador, ao criar o Estatuto da pessoa com deficiência, foi o de retirar o estigma do deficiente de “incapaz”, para promover a sua inclusão social e profissional, sem amarras, assegurando-lhe cidadania plena, em pé de igualdade com as demais pessoas, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal (art. 1º, III).

Na verdade, são duas as modalidades de capacidade jurídica que transitam paralelamente, sem se confundirem: a capacidade civil geral, prevista no Código Civil, e a capacidade geral, prevista no Estatuto da Pessoa com Deficiência. A pessoa com deficiência não é absolutamente incapaz nem relativamente incapaz. É dotada de capacidade legal irrestrita para os atos jurídicos não patrimoniais e de capacidade legal restrita para os atos jurídicos patrimoniais, para os quais fica sujeita a curatela temporária e específica, sem interdição, ou a tomada de decisão apoiada.

A nova ordem legal estabeleceu outro instituto à disposição da pessoa com deficiência: a tomada de decisão apoiada, como alternativa à curatela específica, para apoiá-la na realização de negócio jurídico de natureza patrimonial, sem comprometer a sua capacidade civil. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade (Código Civil, art. 1.783-A). Isso significa dizer que esse instituto depende de aprovação judicial e de intervenção do Ministério Público.

Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. (Código Civil, art. 1.783-A, § 1º).

As diretivas antecipadas de vontade, prevista na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina, vulgarmente conhecida como testamento vital, é outro remédio jurídico que pode salvaguardar os manejos das pessoas com deficiência em caso de interesse dos apoiadores, tutores ou curadores.

A recente Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça, de 15 de fevereiro de 2023, apesar de não ter força executiva, institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece novos parâmetros para processo penal e execuções das medidas de segurança, e convida o fortalecimento e articulação do sistema de saúde com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para as pessoas com transtorno mental ou pessoas com deficiência e se propõe a implementar um programa nacional de atenção integral com estruturação de parâmetros, fluxos e serviços que possam prever medidas de acompanhamento e desinstitucionalização, alvo da política antimanicomial que visa a (re)inserção social.

Outros desdobramentos do estudo do caso de exemplo de processo estrutural de Damião é o acesso ao ensino regular e a Educação Especial e Inclusiva das pessoas com deficiência ou Transtorno Mental que advém, também, do Estatuto da Pessoa com Deficiência e se mostra potente sob o ponto de vista da Educação, Saúde e Bem-Estar Integral previstos na Agenda 2030 da ONU, adotada pelo Poder Judiciário, além na nova Base Nacional Comum Curricular- BNCC, Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 4, de 17 de dezembro de 2018, em franca implementação, que prevê 6 temas Contemporâneos Transversais na Educação: Cidadania e Civismo, Saúde, Meio-Ambiente, Economia, Multiculturalismo e Inovação e Tecnologia.

Assim, a influência da Cultura no Direito e na Política e a evolução da jurisdição no Estado Contemporâneo modifica a função dos auxiliares da justiça. Hoje, a consciência plural, articulada e dialogada corresponsabilizam todos os agentes transformadores sociais e jurídicos que administram novos problemas que exigem adequadas ferramentas processuais aptas a dar conta desses conflitos de interesses invisíveis e poderes ocultos. O processo estrutural na efetivação do acesso à saúde no atendimento ao exercício do Direito à Saúde Mental é desafiador porque desafiadores são os ciclos da vida e como lidamos com as situações que impactam o meio-ambiente.

A investigadora cuidou para não enviesar a pesquisa e o artigo com juízo de valor se as atuais mudanças são boas ou ruins, pois isso contaminaria o estudo; apenas destacou o estudo do caso de Damião Ximenes Lopes versus Brasil como modelo de um processo/litígio estrutural que permitiu vermos que a cultura tem o poder de transformar a sociedade e como podemos olhar para a política com conceito integrativo- Política Integrativa. Nenhum ser humano está isento desse debate e desse compromisso social. Real ou Virtual, a cultura tem seu papel fundamental e o poder de transformar vidas, diria até, de salvar vidas. Precisamos recuperar a saúde das organizações e conhecimentos técnicos que mais divergem do que convergem através da ética e do compromisso com o que é melhor para as pessoas com deficiência mental, intelectual ou múltipla. Enquanto não reconhecermos que somos parte do problema e não da solução, o comportamento neurodivergente continuará sendo estigmatizado, invisível e a inclusão e a diversidade não passaram do discurso. Talvez isso seja algo que possamos aprender nessa era polarizada e binária. Afinal, o que é ser normal? É o que está de acordo com a norma?

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