Entre todas as ideias
equivocadas que constituem o senso comum sobre políticas de segurança pública
no Brasil, talvez nenhuma seja mais perigosa e destrutiva do que a crença de que
o combate eficaz à criminalidade passa necessariamente pelo atropelo de
direitos humanos e de garantias fundamentais próprias do Estado Democrático de
Direito.
Conforme sustentei de
maneira mais aprofundada em artigo[i]
publicado no ano de 2020 na revista Crítica Jurídica, da pós-graduação em
Direito da Universidade Nacional Autônoma do México (trabalho ao qual remeto o
leitor para uma análise mais aprofundada do problema aqui abordado), a
comparação de dados de múltiplos relatórios internacionais recentes sobre
direitos humanos e paz social aponta para a existência de uma clara correlação
entre ordenamentos jurídicos comprometidos com o respeito a direitos e
garantias fundamentais e o sucesso destes ordenamentos em proporcionar aos seus
cidadãos níveis elevados de pacificação social. Dito de outro modo: a ordem
democrática civilizada, dentro dos padrões contemporâneos, não é erguida "à
base de bala" - mas sim por meio do império do Direito democraticamente
construído e de instituições sólidas e funcionais.
O caso específico da
recente chacina ocorrida na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, é
emblemático em relação aos déficits de cidadania, legalidade e democracia que
permeiam as políticas de segurança pública em nosso país. Do flagrante desrespeito
à decisão[ii]
do STF na ADPF 635 (que proibiu a realização de operações policiais em comunidades
cariocas enquanto perdurar a situação de calamidade pública imposta pela
pandemia de Covid-19 em andamento) aos chocantes números da carnificina (vinte
e oito pessoas assassinadas pelas forças policiais em uma única operação, em um
único dia), não faltam motivos para que qualquer indivíduo - do mais leigo em
Direito dos cidadãos ao operador mais experiente das carreiras jurídicas - se
veja perplexo com as circunstâncias do evento.
Ignore, por um momento,
as questões jurídicas do caso e proponha-se um exercício imaginativo: vislumbre
uma operação policial realizada em um bairro de classe média-alta (desbaratando
esquemas de tráfico, lavagem de dinheiro, ou sonegação - digamos, por exemplo,
no contexto da Operação Zelotes) que terminasse com a execução sumária de 28
suspeitos no local. Como a opinião pública e a mídia reagiriam a uma situação
dessas? Se achamos difícil até mesmo imaginar tal coisa, ao mesmo tempo em que
naturalizamos o que ocorreu no Jacarezinho, isso só mostra que já
internalizamos em nosso senso comum a ideia de que certas práticas de exceção
são aceitáveis - desde que perpetradas em comunidades periféricas e no seio de
populações carentes, desassistidas e desprovidas de voz e representatividade.
É neste ritmo, de
"fato isolado” em “fato isolado", que se constrói uma prática
sistemática de gestão dos "indesejáveis" por meio de práticas de
exceção travestidas de “políticas públicas”. Surpreendentemente, no entanto, esta
cruel realidade – apesar de seu caráter recorrente e continuado - permanece
fora da pauta do debate político nacional, surgindo de forma episódica tão
somente na forma de reações de curto prazo a manchetes pontuais.
Na contemporânea sociedade
do espetáculo, na qual um evento "bombástico" é rapidamente esquecido
em questão de dias para dar lugar a outro “grande assunto” momentâneo, a nossa
memória coletiva perece junto com as vítimas da brutalidade estatal. Será possível
que já nos esquecemos de casos como a morte do menino João Pedro em operação
realizada no Morro do Salgueiro em maio de 2020, do músico Evaldo dos Santos
Rosa (morto após seu carro ser fuzilado por mais de 80 tiros disparados por
militares em abril de 2019), do assassinato do menino de 14 anos Marcos
Vinícius no Complexo de Favelas da Maré em junho de 2018 e dos abusos
reiterados[iii]
cometidos ao longo da intervenção federal com forças militares no Rio de Janeiro
em 2018?
Não se trata, por
óbvio, de ignorar as severas dificuldades impostas às polícias no combate
ostensivo à criminalidade em nosso país, nem de se filiar a um sentimento de
abolicionismo penal ingênuo ou de demonização das polícias, norteando-se por
fantasias utópicas de paz social “espontânea” que jamais existiram fora do
reino da ficção. Nenhuma nação, por mais civilizada e comprometida com princípios
de direitos humanos e garantias legais, conseguiu até hoje erradicar por
completo o elemento repressivo que é próprio da atividade estatal no exercício
do aspecto coercitivo da aplicação da lei. Todavia, “repressão” deve ser
entendida, aqui, como aquela exercida única e exclusivamente dentro das
hipóteses da lei e nos limites expressos da normatividade sistêmica de um
Estado Democrático de Direito. Na democracia contemporânea, não há espaço para
solipsismos discricionários e/ou autoritarismos no agir repressivo-coercitivo
do Estado.
Se é verdade que
facções criminosas se encastelam entre em comunidades periféricas, fazendo de
refém populações carentes e abusando de práticas brutais de violência, por
certo os agentes estatais que atuam nos perímetros urbanos pátrios não podem se
imaginar em situação análoga a de uma “guerra”, tratando cidadãos de
comunidades carentes como se fossem inimigos estrangeiros armados em um campo
de batalha. Tampouco se encontram autorizados a mimetizar ou emular as mesmas
práticas brutais utilizadas pelo crime organizado. Ao contrário dos bandidos, que
naturalmente atuam à margem das leis e do Direito, o Estado não pode, em
hipótese alguma, se converter ele próprio em criminoso – sob pena de o Poder
Público, a cidadania e as instituições se deteriorarem e se converterem em
hordas brutalizadas análogas às facções criminosas e aos facínoras que
pretendiam combater.
À toda evidência, os
fatos que emergem do recente caso de Jacarezinho apontam para um expediente de
execuções sumárias em série. É fundamental ter em mente que não faz o menor
sentido tentar justificar a chacina com base em julgamentos morais aleatórios
do tipo “todo mundo ali era bandido”. Primeiro, porque tal afirmação não
encontra respaldo nos fatos conhecidos até o momento[iv].
Segundo, porque a pena de morte é vedada em nosso ordenamento jurídico até
mesmo para criminosos julgados e com condenação transitada em julgado (art. 5º,
XLVII, “a” da Constituição Federal) – sendo inconcebível, portanto, a aplicação
sumária de pena capital para meros suspeitos, que sequer chegaram a ser
devidamente processados ou condenados.
É
claro que alguns podem achar que só ações policiais rápidas e brutais podem dar
à sociedade o sentimento de resposta adequada aos abusos da criminalidade
organizada. De fato, o Direito civilizado é frequentemente anticlimático e
enfadonho - e, às vezes, torna demorado e tortuoso o processo de prestação de
justiça. Em uma sociedade acostumada com os imperativos da instantaneidade e do
espetáculo (aquilo que Bauman denomina de “Modernidade Líquida” e Lipovestsky
chama de “Hipermodernidade”), o tempo do Direito pode frustrar certas expectativas
vingativas e imediatistas. Todavia, a velocidade da Justiça não é a mesma das
preferências customizáveis e individuais da sociedade de consumo – e não deve
ser. Não custa lembrar: a única alternativa ao Estado de Direito conhecida até
hoje é a barbárie populista/tribalista, que se afirma por meio do império da
satisfação imediata dos impulsos do baixo-ventre de hordas e turbas de ocasião.
[i]
ABEL,
Henrique. As garantias fundamentais e os direitos sociais da Constituição
Brasileira de 1988 como supostos “obstáculos” para o desenvolvimento econômico
e político do país: desconstruindo um mito. Revista Crítica Jurídica Nueva
Época - Unam Posgrado Derecho (enero-diciembre 2020), nº 2, p.383-407, 2020.
Disponível no endereço eletrônico: tinyurl.com/277vjpuw
[ii] BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Tutela Provisória Incidental na Medida Cautelar na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 Rio de Janeiro (05
de junho de 2020). Decisão disponível no endereço eletrônico: www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf
[iii] RAMOS, Silvia
(coord.). Vozes sobre a intervenção. Rio de Janeiro: Observatório da Intervenção/CESeC,
agosto de 2018. Disponível no endereço eletrônico: https://cesecseguranca.com.br/textodownload/vozes-sobre-a-intervencao/
[iv] DEUTSCHE WELLE. O que já se sabe sobre o massacre do Jacarezinho. Disponível para consulta no endereço: https://www.dw.com/pt-br/o-que-j%C3%A1-se-sabe-sobre-o-massacre-do-jacarezinho/a-57498522
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