Artigo do Dr Marcus Vinícius Antunes, advogado, associado do IARGS,
professor de direito constitucional, pós-doutor pela UFRGS
Tema: Dois jantares, e certas surpresas. Pontes Miranda
Tive a oportunidade de conhecer Pontes de Miranda. O primeiro encontro foi no Rio de Janeiro, num jantar no Iate Clube, por convite dele à nossa família. Tinha então uns 10 anos. O jantar me ficou marcado por tantas novidades. E, admito, especialmente, por me ver fascinado pela filha, que me pareceu belíssima, e próxima de minha idade.
Meu pai, Ápio, era professor de Direito Internacional Privado, na Faculdade de Direito de Pelotas, e era “devoto” de Pontes, como dizia. Citava-o com frequência nos artigos que publicava e o saudou, creio que por mais de uma vez, em suas palestras em Pelotas.
O segundo encontro se deve a certas causas. Eu era estudante de Direito, em 1971, amuado com o curso, amesquinhado sob a égide da ditadura militar, no infausto convívio do AI 5 com a Constituição. Passado o primeiro ano, de disciplinas teóricas, o estudo do direito positivo, sem vôos, me incomodava. E eu incomodava em casa, dizendo que queria suspender o curso. Meu pai, com quem me parecia psicologicamente, tinha seu sonho: um escritório nosso, maior ainda, e eu como continuador. Mas se punha quase em desamparo, diante de minhas recusas.
Movido possivelmente pela ansiedade, conseguiu que eu fosse ao encontro de Pontes, hospedado no City Hotel, talvez o melhor de Porto Alegre, então e que tristemente encerrou suas atividades em 2022.
Devia ser o ano de 1971, ou 72. Vim jantar com ele e Amnéris, sua esposa, no próprio hotel. Com 19 anos, eu opinava sem nenhuma cerimônia, protegido pela juventude incauta. Sem demonstrar irritação, ele dava suas coordenadas. “Não creia na ciência do direito argentino”. Se não me equivoco, tinha sua aspereza com Carlos Cossio, jurista daquele país, da teoria egológica do direito. E com outros. E, para meu espanto, afirmava que Portugal, ainda salazarista, era um dos principais centros culturais do mundo. E assim por diante. E vieram algumas sugestões, talvez conselhos. Sugeriu, não sei se a pedido de meu pai, que percebia minhas inclinações e atuação nem tão discreta, que não me metesse em política – o pai havia sido demitido da Faculdade, em 1964, e tivera ordem de prisão, passando três meses no Uruguai, asilado.
Disse-me muitas coisas, com muita gentileza. Que não sabia se era dos melhores juristas; sua vocação mesmo era a matemática (e, de fato, matematizou certos temas do direito, como o das cargas eficaciais das sentenças). E passou a relatar que podia ter influído no curso da segunda guerra mundial. É que, como embaixador do Brasil, nomeado por Getúlio Vargas, creio que na Colômbia, havia observado a possibilidade de disparos de mísseis alemães contra os Estados Unidos, por meio de cálculos, e advertira as autoridades daquele país.
Não me animo a falar em anedotas; no entanto, recebi mais um conselho, de forma inusitada. No início ou no fim do jantar, levantamos para ir ao sanitário, no mesmo segundo andar. Depois de lavar as mãos, pus a mão na maçaneta para abrir a porta. Num gesto rápido, deu um pequeno tapa em minha mão e disse: “Não faça isso, é o lugar mais sujo do mundo”. E envolveu sua mão no papel de secar, apanhou a maçaneta e abriu a porta. Talvez tenha tido a premonição da pandemia.
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